quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

'Mubarak quer que nos matemos', diz egípcio no Cairo



Compartilhar: Pela primeira vez desde o início das manifestações pela renúncia do presidente Hosni Mubarak, em 25 de janeiro, manifestantes pró e contra o líder egípcio entraram em choque nesta quarta-feira no Egito, tendo como cenário o local que virou símbolo do movimento anti-Mubarak: a Praça Tahrir, ou da Libertação. Perante os braços cruzados do Exército e da polícia, que deixaram os choques correrem livremente, um manifestante disse à reportagem do iG: "Mubarak quer que nos matemos."
A erupção da violência entre os grupos rivais, que deixou 639 feridos e pelo menos três mortos, levou o centro do Cairo ao caos absoluto, sob o olhar passivo dos policiais e militares. A violência eclodiu por volta das 12 horas locais (8 horas de Brasília), quando milhares de defensores de Mubarak se aproximaram da Praça Tahrir para enfrentar os membros da oposição, que na terça-feira prometeram manter seus protestos apesar do anúncio de Mubarak de que não tentará a reeleição nas eleições de setembro.
Sete horas depois, às 19 horas locais, os grupos rivais se preparavam para um confronto que parecia ter conseqüências imprevisíveis. Como havia bloqueios nas saídas da praça, os opositores do regime estavam cercados no local sem ter como sair. O clima era de extrema tensão.
Havia centenas de manifestantes com ferimentos na cabeça, causados por pedradas. Como gestos de convocação para uma batalha, homens quebravam calçadas para fazer pedras e portavam barras de ferro de um metro de comprimento.
Havia informações de que, do lado de fora da praça, estavam policiais à paisana possivelmente portando armas de fogo. A todo momento no fim da tarde, explodiam ondas de violência, com correria e gritos. A reportagem do iG ouviu sete tiros de munição não-letal por volta das 16h40 (12h40). Cerca de uma hora e meia depois, duas rajadas foram disparadas. Coquetéis molotov e granadas de gás lacrimogêneo também foram lançados, além de pedras.
A onda de violência desta quarta-feira contrastou com as manifestações pacíficas de terça-feira, quando mais de 1 milhão de egípcios em todo o país exigiram a renúncia do presidente. A diferença foi a entrada em cena dos manifestantes pró-Mubarak, que elevaram o clima de tensão em defesa do presidente, que anunciou que só deixará o poder após as eleições de setembro.
Para muitos, não é o suficiente. Na manhã desta quarta-feira, só havia quem quisesse a deposição de Mubarak na praça, cuja tradução é Praça da Libertação/Liberação. Havia cartazes bem-humorados, como “Mubarak, boa viagem para a Arábia Saudita”, em referência ao país em que se exiliu o presidente deposto da Tunísia Zine El Abidine Ben Ali.
Por volta das 13 horas (9 horas em Brasília), era possível ver a movimentação em massa de manifestantes carregando fotos, cartazes e banners com a imagem do presidente caminhando em direção à praça, que é uma confluência de ruas que a cruzam, com muitos jardins no meio, e cerca de dez entradas, criando um raio de cerca de 400 metros a partir de seu centro.
Em cada uma das entradas da praça, tanques do Exército marcavam posição com barricadas, enquanto havia centenas de veículos militares no centro da capital. Mas os militares, que na terça-feira prometeram não usar a força contra os manifestantes, permaneceram inertes. Na prática, quem coordenava o controle de chegada à Tahrir eram voluntários, em redundantes barreiras de homens de braços dados, verificando os documentos e fazendo revista pessoal e de bolsas – a fim de evitar a entrada de armas.
Quando os partidários de Mubarak começaram a se aglomerar nesses postos de controle, por volta das 14 horas (10 horas de Brasília), com o Exército dividindo os dois grupos, as hostilidades começaram a escalar. Dos gritos com palavras de ordem de lado a lado, passaram aos xingamentos, e logo pedras do tamanho de abacaxis começaram a voar de lado a lado, ferindo quem estava próximo às barreiras.
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Logo depois, os manifestantes pró-governo, que no início do dia eram expulsos da praça com alguma truculência, passaram a sair em meio a socos, tapas no rosto e aberta hostilidade. No início dos choques, o iG presenciou ao menos 13 homens com o rosto sangrando, um deles com dentes quebrados, e apanhando enquanto eram levados para a divisa dos dois grupos. Um jornalista inglês também foi espancado ao tentar interromper uma dessas agressões.
À medida que o tempo passava, os ânimos se exaltavam cada vez mais. Havia militantes a favor de Mubarak montados a cavalo e até em camelos, prontos para uma inusitada guerra campal medieval. Também havia relatos de pessoas armadas com facões, facas e barras de ferro. Um helicóptero militar passou a sobrevoar a área.
O centro da praça se esvaziou e a multidão que, antes protestava sem violência, embora de forma raivosa, encaminhou-se para três saídas, que concentravam os opositores.
A estudante canadense Kimi S. esforçou-se e, surpreendentemente, conseguiu por cerca de 20 minutos demover homens a não transformar em arma uma pilha de pedras sobre a qual montou “guarda”. Toda vez que alguém pegava uma pedra – de uma mureta destruída com esse objetivo – ela tirava da mão do agressor, que era surpreendido com a atitude e cedia.
Mesmo falando apenas inglês, foi atendida na maioria das vezes. “Vocês estão dando armas a eles! Não façam isso, eles vão jogar contra vocês de volta”, dizia. “Mas eles vão nos matar! Não tem ninguém para nos defender aqui. Cadê o governo?”
Um casal de meia-idade também fez o mesmo e, após quase três minutos tentando, tirou da mão de um rapaz uma viga de ferro assemelhada a um pé de cabra.
Sucessivos grupos passavam carregando homens sangrando, atingidos na cabeça, para os primeiro-socorros. Outros vinham andando. Havia centenas com gaze ou a cabeça enfaixada. Minutos depois, porém, assim que tiros de bala de borracha foram ouvidos e a confusão aumentou, os esforços de paz da canadense e do casal foram frustrados.
Homens, mulheres e crianças passaram a reunir tudo o que pudesse ser usado como arma em um eventual confronto. Pedras do tamanho de paralelepípedos eram quebradas para ficar menores, outros montes eram carregados até a “zona de batalha” em sacos, banners, plásticos e bolsos. “Mubarak quer que nos matemos. Diga isso ao mundo. Eles (os partidários do presidente) são policiais à paisana”, disse, nervoso, um rapaz ao iG, às 18 horas (14 horas de Brasília).
Uma obra que ocupa parte da área servia de paiol para manifestantes anti-Mubarak se armarem de vigas de ferro, pedaços de pau e mais pedras. Em dado momento, era possível ver dezenas de pedras no ar ao mesmo tempo, voando de um lado ao outro da barreira. Muitos passaram a improvisar sua segurança usando cachecóis na cabeça como capacetes. Um homem portava um capacete semelhante ao de operários de obra. Rumores passaram a circular, como o de que jornalistas estrangeiros seriam alvo de ataques.
Opositor ferido é carregado durante choques na Praça Tahrir, no Cairo
Em meio ao caos e à tensão que pairava no local, porém, coexistia uma peculiar tranquilidade em alguns bolsões na praça. Havia gente deitada nas barracas de camping usadas na vigília desde a semana passada, e centenas se ajoelhavam para rezar no horário da oração muçulmana. Além de manifestantes homens, havia muitas mulheres, algumas idosas, e crianças sitiadas no local. A situação era crítica.
Todas as saídas aparentavam estar bloqueadas para a multidão pelos tanques do Exército e pela ameaça das pedras e de uma multidão de opositores enfurecidos. Após tentar três diferentes rotas de escape, a reportagem do iG conseguiu deixar o local por uma via vicinal. O perímetro de segurança e o cerco dos manifestantes pró-Mubarak ultrapassava 1 km do centro da praça.
As estreitas e desertas ruas sob iluminação feérica nos arredores da praça revelaram o resultado de dias de protestos: dezenas de carros queimados e virados de cabeça para baixo, lixo espalhado por toda parte, assim como barricadas e homens armados de paus e pés de cabra. Com a saída da polícia das ruas, no fim da semana passada, moradores adotaram milícias e improvisaram postos de controle e revistas nos bairros, para evitar roubos e saques de residências.
Nesses momentos, ser brasileiro ajuda e a lembrança do nome de um jogador de futebol é instantânea, acompanhada de um sorriso e da liberação de passagem. Mas nem sempre.
Apesar do anúncio oficial do governo, na prática o toque de recolher passou a vigorar uma hora antes do previsto, às 15 horas (11 horas de Brasília), como frisou um capitão do Exército, que assegurava, com uma guarnição, as áreas das embaixadas dos Estados Unidos e do Canadá, já fora do extenso perímetro da praça.
“É ilegal estar na rua depois das 15h, de acordo com o governo. Eu deveria prendê-los”, disse ao repórter e a dois egípcios que buscavam uma saída do conflito. Nas ruas e na praça, dezenas de milhares também desafiavam o inútil toque de recolher do governo.



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