sábado, 28 de janeiro de 2017

Um absurdo total





É muito indigesto ouvir comentários do tipo: "Nossa, fez 5 anos de faculdade pra trocar fralda!", ou "Você é bom, porque não faz medicina", ou ver uma novela das 21 tratando os enfermeiros como parasitas que nada fazem, além de "enfeitar" o hospital. Pois bem, sei que muita gente não faz a menor idéia do que ocorre dentro de um hospital, e achei por bem fazer essa espécie de "diário de um enfermeiro", para que todos entendam como é de fato o nosso dia de trabalho:
Normalmente a galera da enfermagem acorda às 5 da manhã pra bater ponto às 7 e render os colegas que já estão massacrados após uma jornada cruel de trabalho.
Ao chegar no setor, seja ele UTI, emergência ou clínica médica o enfermeiro já começa a avaliar os pacientes, observa quem está mais grave, faz escala de técnicos, confere prescrições, checa quem vai pra TC, pra cirurgia, pra ressonância, enfim, o dia já começa à 220W. Boa parte dos pacientes de UTI são politraumatizados bem ferrados mesmo, a clínica médica abarrotada de homens e mulheres, idosos com múltiplas úlceras, e a emergência, bem, se você conseguir colocar todos os pacientes em macas, sinta-se vitorioso!
Enfim, durante a manhã você está lá, ajudando nos banhos dos pacientes graves, checando medicações e procedimentos pendentes, levando pacientes para a TC, quando de repente, vem a primeira parada do dia, um vozinho em pós-operatório de AVE hemorrágico, e vira aquele corre corre, e puxa carrinho, prepara adrenalina, mas o vô não aguenta e morre, eis que você prepara o primeiro corpo do dia. Mas você não se abate, outros pacientes da UTI estão graves, e precisam da sua assistência. É tanto trabalho, que normalmente só conseguimos sentar na hora do almoço, mas, a cirurgia geral chega na hora e diz "prepara o paciente do leito 1 pra traqueostomia, e fica aí pra me auxiliar", daí, você engole a fome, e vai lá, e seu almoço fica pra mais tarde.
Enquanto isso na pediatria, uma criança com meningite morre, depois de 1 mês de internação, lá fora, estão os pais dela, aos prantos, inconsoláveis por perderem a filha única de 4 meses. Lá dentro, a equipe de enfermagem está engolindo o choro, a frustração, desligando os aparelhos e preparando mais um corpinho. Gente, vocês não fazem ideia da dor que é lidar com uma morte assim, mas ter de juntar os pedaços pra encarar o resto do plantão, ainda falta umas 20hs de muito trabalho pela frente...
Um andar acima, na clínica médica, o enfermeiro está lá, com uns 50 pacientes, fazendo curativo em úlceras de decúbito desde às 8 da manhã, resolvendo todos os pepinos possíveis e inimagináveis, quando ele senta pra tentar aprazar as prescrições (reparem que já passa das 13hs!), alguém grita lá no fim do corredor "Enfermeiro, os pacientes da enfermaria X estão agitados e arrancaram as sondas", e lá vai o enfermeiro repassar SNE em todo mundo, recalcular tempo de dieta e tal. Lá pelas 23hs, quando vc pensa que a paz irá reinar, um paciente psiquiátrico tenta levantar sozinho e cai do leito. Ai você corre, mas não tem médico no setor para solicitar Raio X, se vira nos 30! Acreditem em mim quando digo, na clínica médica, acontecem imprevistos o dia inteiro...
Mas a cereja do bolo está na emergência. Lá pelas 00h, só tem 1 médico na emergência, que somente irá atender casos muito graves. O enfermeiro do acolhimento é obrigado a estar na linha de frente para dizer quem vai ou fica, mas o povo não entende, ameaçam de morte e o caramba ...Por volta das 2hs da manhã chega um paciente usuário de cocaína, em PCR (parada cardiorrespiratória) após overdose, e um jovem vítima de PAF torácico (para os leigos, levou um tiro no peito). E é aquela correria, massageia, ventila com ambú, médico entuba, leva o baleado pro centro cirúrgico, e notícia triste: "Enfermeiro, não tem ventilador pro rapaz da overdose, já estão todos em uso na sala vermelha", o enfermeiro então, vai mantendo o rapaz em ambú até que outro ventilador chegue no setor, ou consiga a transferência, e isso pode levar horas, o cansaço é avassalador.... As 5 da manhã já começam a ser colhidas as rotinas laboratoriais, os balanços hídricos começam a ser fechados e checados, como um bom enfermeiro, você verifica tudo para que não existam pendências de uma equipe para outra. Às 6 da manhã, o menino da overdose, que tinha uns 16 anos, faz uma quarta PCR, e seu coração não resiste, ele vai à óbito. Às 7hs da manhã, você já passa o plantão visivelmente esgotado. Aí, você junta suas coisinhas e vai pro outro hospital, encarar mais 12hs ou 24hs de plantão, tentar fazer uma graninha extra, porque a rede pública e privada costumam pagar muito mal. Depois de umas 48hs no ar, você vai pra casa, tentar dormir e curtir um pouco a sua família, porque no dia seguinte, lá estará você novamente, numa longa jornada de trabalho. Confesso à todos, que mesmo em casa, já cansei de dormir ouvindo bombas e monitores alarmando, é desesperador! Mas enfim, somos apenas enfermeiros né?! O único momento em que seremos lembrados, é quando algum colega de profissão tragicamente administrar vaselina na veia de um paciente, viramos escárnio público pelo erro de UMA pessoa. Não sei, mas tenho a sensação de que metade das pessoas que criticam, não aguentariam fazer o nosso trabalho por mais que 30 minutos, afinal, para lidar com a dor e a doença alheia, até onde sei, é preciso conhecimento que vai muito além de saber trocar fraldas.

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