Carolina, grávida pela 4ª vez, faz parte da história do hotel de luxo que foi transformado em casa para 35 gestantes sem-teto de São Paulo
Gabriela vai nascer nos próximos dias. O endereço da futura caçula de quatro irmãos pode ser um prédio de 12 andares onde já funcionou um hotel de luxo no centro paulistano ou “sabe lá Deus onde...”, suspira a mãe Carolina Santos Silva, 26 anos, enquanto acaricia a barriga pontuda, resultado dos quase nove meses de gestação.
Pela quarta vez, Carolina carrega no ventre uma criança que terá moradia incerta. Ela divide o suspiro de incerteza com outras 34 mulheres que também estão em contagem regressiva para a chegada dos novos rebentos, mas em sobressalto por causa de uma possível expulsão da moradia provisória e invadida.
As “barrigudas”, como são chamadas onde vivem, estão reunidas onde já funcionou o Lord Hotel, um dos 10 prédios invadidos em São Paulo . São tantas grávidas que o hotel fantasma da região central – desativado há anos, desapropriado pela Prefeitura e há dois meses ocupado por 240 pessoas – acabou transformado em uma verdadeira ‘casa das gestantes sem-teto’.
Nele, hóspedes como Tom Jobim já foram frequentadores assíduos. Dos tempos áureos do edífico, sobram o revestimento de mármore, o salão nobre quase intacto e o elevador espelhado, desativado por gastar muita energia.
Para dar conta das grávidas que hoje habitam as suítes do local foram esquematizadas – pelas próprias mulheres e pelas lideranças locais – visitas de agentes de saúde, campanhas de incentivo ao pré-natal, palestras sobre gestação segura e sobre a importância da amamentação e da vacinação. O 'censo' de gestantes, bebês e crianças é semanalmente atualizado pelos organizadores dos sem-teto, que divulgam as estatísticas.
“Nosso foco com elas também é divulgar os métodos contraceptivos, como camisinha e pílula, já que o número de jovens que acabam grávidas também é significativo”, afirma Osmar Silva Borges, 46 anos, 30 deles dedicado à Frente de Luta por Moradia (FLM), que ocupa prédios vazios acompanhado de um grupo de sem-teto.
Todas as atividades que agora fazem parte da rotina do Lord são semelhantes às desenvolvidas em casas de parto e gestantes mantidas pelo Sistema Único de Saúde. Mas no local as trocas de experiências são tidas como os principais benefícios à saúde das futuras mães, como contaram as 15 mulheres entrevistadas pelo .
“A gente fala a mesma língua. Aqui, os sonhos e os pesadelos são os mesmos”, define Carolina, a “Carol do 5º andar” do Lord, onde os quartos, todos com carpete e alguns com banheira, servem de abrigo de luxo para quem – como ela – já dormiu em calçadas, embaixo de pontes, favelas e acampamentos feitos de barracas de lona.
Mesma origem
As histórias das barrigudas do Lord descrevem enredos muito parecidos, em que os personagens têm quase a mesma idade, a mesma origem e o mesmo futuro incerto. Gabriela, quando nascer, vai personificar o encontro de dois sem-teto.
O pai, Jerônimo Moura Leite, 26 anos, vive sem casa desde os 12, quando viu o barraco literalmente voar após um vendaval no Rio de Janeiro. A mãe, Carolina, ficou sem teto quando, aos 18, uma decisão judicial a obrigou a deixar o cômodo que havia sido construído na favela Alto Alegre, região metropolitana de São Paulo.
Entre ocupações de prédios vazios, expulsões com apoio da Tropa de Choque da Polícia Militar e novas invasões, os dois trouxeram ao mundo Lucas, Laisa, Sofia e, agora, Gabriela.
Também é no útero de uma das mulheres expulsas da favela Alto Alegre que cresce Alice. Taís Leme Reis, 20 anos, está no 8º mês de gestação e escolheu o nome da terceira filha depois que chegou ao Lord.
“Se ela nascer e eu ainda estiver aqui, vai ser um país das maravilhas mesmo”, diz a jovem, indicando a origem da ideia de batismo da garota.
A primogênita de Taís chama-se Carolaine. A segunda Kimberly. Ao contrário da irmã mais nova, as duas foram gestadas no esquema ‘pula-pula’.
“Eu e o pai delas pedíamos abrigo cada noite na casa de um conhecido. Acabamos parando no movimento de luta por moradia.”
Se o parágrafo inicial das histórias das grávidas sem-teto não começa em uma favela desapropriada por decisão judicial – como é o caso de Tais e Carol – o ponto de partida é a migração. São meninas que chegaram a São Paulo vindas de outros estados e não conseguiram nem o sonhado emprego nem uma casa para morar.
Francielma Lopes Santos, 20 anos, saiu de Pernambuco para estudar na capital paulista. Acabou virando uma das lutadoras por moradia popular, mesmo com o barrigão de 7 meses que abriga Rebeca, a primeira filha.
Já Fátima Mariano Silva, 22 anos, deixou o Paraná aos 12 com a promessa de ser acolhida pelas amigas paulistanas. Não recebeu abrigo, acabou “ajuntando” com um namorado, teve um menino chamado Carlos Eduardo e acaba de parir Pérola.
“Era uma relacionamento de muita briga, humilhação. Preferi sair de casa e acabei na rua. Depois, entrei para a luta por moradia. Hoje estou feliz aqui no Lord”, diz Fátima.
Região da saúde
As grávidas do Lord sabem da importância do apoio entre elas, mas reconhecem que a localização da moradia provisória também tem garantido gestações mais seguras. Depois de instalados no centro paulistano, 80% dos sem-teto que estão no hotel conseguiram emprego e todas as 35 grávidas fazem pré-natal em unidades de saúde que ficam ao redor do prédio (números fornecidos pela FLM). As 152 crianças que também estão espalhadas pelos andares conseguiram vagas em creches.
“A gente tava acostumado com as dificuldades na periferia. No centro, o posto de saúde é mais vazio, a escola tem menos fila, fica mais fácil quando se é morador aqui”, diz Maria do Socorro Silva, 28 anos, que acaba de conseguir tratamento para a filha de dois meses na Santa Casa de Misericórdia.
A filha de Maria do Socorro, Camile Vitória, nasceu com um coágulo na cabeça, poucos dias depois que o Lord foi ocupado. Por estar no centro, mãe e bebê foram encaminhadas para o hospital referência para a região, que é a Santa Casa.
Além disso, com o número de desempregados em declínio, há dinheiro para conseguir as roupinhas dos futuros bebês, a alimentação adequada para as grávidas, a iluminação, a limpeza, a pintura das paredes e a reforma estrutural do prédio do Lord, castigado e atrofiado pelo tempo em que não funcionou.
“Tudo é compartilhado, temos regras, horários e despesas. Eram 37 grávidas aqui. Agora são 35, mas temos 2 recém-nascidos”, diz o Japa, uma espécie de zelador local.
O último que chegou para os números do Lord, há 5 dias, é Davi: 3 quilos,51 centímetros e cabeleira natural arrepiada, no melhor estilo do jogador Neymar.
Ponto final
A "casa da gestante sem-teto" do Lord hoje vive na corda bamba. Todos lá sabem e reconhecem que estão em situação ilegal. O antigo hotel agora pertence à prefeitura paulistana, que debate com a FLM na Justiça a possibilidade dos ocupantes ficarem ou não no local.
Oito de janeiro de 2013 já foi a data limite para a saída dos sem-teto, mas Osmar e o grupo conseguiram mais prazo.
Em negociação, estão a proposta de permanecer no hotel ou a possibilidade de transferir o grupo para um projeto de moradia popular. Tem ainda a terceira via que é o tal “sabe lá Deus onde”, repete Carolina.
Entre tantas dúvidas, ela agora tem uma certeza: “Gabriela é a última filha. Depois de tantas filas, tantas inscrições e tanta espera, aqui no centro eu consegui. No dia do parto da Gabi, eu faço a laqueadura e fecho a fábrica.”
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