sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Se Deus é Bom, De Onde Vem o Mal?


“Deus, sendo bom, fez todas as coisas boas. De onde então vem o mal?”
Não sou fã da revista Veja, mas a capa de sua edição mais recente me chamou atenção. Surpreendi-me! Veja fazendo a pergunta filosófica de Santo Agostinho, na qual Deus está envolvido? Bom, pensei, quem sabe agora vão dar um tratamento digno e diferenciado à questão. Engano meu. A resposta-manchete dada na forma de uma citação do poeta polonês Czeslaw Milosz – “O mal (e o bem) vem do homem” – limitou demais o assunto. Não que o homem não esteja envolvido na problemática do mal. O mal tem tudo a ver com a humanidade; uma grande porção dele procede de nós. Só penso que a citação retórica e lacônica não faz jus à grandeza do tema. Em termos de mal e de bem, o homem não é a medida de todas as coisas. Para minha decepção, Veja não aprofundou o assunto. Apenas aproveitou o frisson que o drama dos refugiados sírios provocou na mídia mundial, desgastando ainda mais a imagem-símbolo do pequeno Aylan – vítima inocente de um mundo repleto de maldade. Plus ultra!
“De onde vem o mal?” ou “por que o mal existe?” é a pergunta secular. Desde Epicuro, e o seu famoso trilema, chegando até nossos dias, o problema do mal (com os seus desdobramentos teóricos e práticos) continua a atravessar-nos como uma lança perfurante, ferindo nossas emoções e intelecto e colocando contra a parede toda a nossa lógica, racionalidade, filosofia e teologia. Seja em que vertente for, o mal desafia as explicações mais sofisticadas. Juan Antonio Estrada, em A Impossível Teodiceia: a crise da fé em Deus e o problema do mal, enfatizou o espanto e o escândalo causados por esse intruso: “Desde o primeiro momento da sociedade e da cultura, o mal aparece como um absurdo, como algo que se opõe à racionalização do mundo e do homem. Nós o experimentamos como problema especulativo e existencial que tem um substrato comum, o de ser um enigma que provoca mal-estar. O mal se apresenta à consciência como aquilo que não deve ser. Como elemento constitutivo da experiência humana, ele sempre foi um problema da filosofia e da religião. Não há religião que não tenha assumido sua problematicidade, assim como também é difícil encontrar alguma corrente filosófica que de uma forma ou de outra não tenha pretendido elucidar seu significado e propor meios de dar-lhe um sentido, ainda que tal sentido seja apenas teórico e não afete em nada sua realidade fática.” Pelo lado da religião, Deus é central em qualquer debate que proponha apresentar uma resposta convincente (não conclusiva) para o problema do mal.
Há uma resposta adequada para a questão da existência do mal diante da suposta existência de um Deus bondoso, onisciente, onipotente e onipresente, defendido pelo teísmo clássico? Isso vai depender do que se entenda por “resposta”. Começando na era moderna com os Ensaios de Teodiceia de Leibniz, vêm se multiplicando as tentativas de se pensar e explicar a presença do mal no mundo. O fato é que no tocante a tal dilema ninguém escapa: nem crentes, nem descrentes, nem agnósticos. Todos estão “comprometidos com o mal”. Assim, cada um tem a sua resposta particular.
Os descrentes radicais costumam afirmar que “o mal é a rocha do ateísmo”, ou seja, o mal constitui um argumento contra Deum ou adversus Deum. Nessa “rocha”, asseguram os ateus, todas as teodiceias e defesas apologéticas em favor do Ser infinito são destruídas e se desfazem no pó. Nesse aspecto, considerável parte do juízo ateísta (aparentemente cheio de razão) contra a existência de Deus vem mesclado de incoerências lógicas e fortes sentimentos, traduzidos em rancor e raiva dissimulados e investidos contra uma Pessoa que, na cosmovisão cética, nem existe. Quando não, a análise ateia encontra-se recheada de ironia e sarcasmo ao estilo voltairiano, cuja representação mais conhecida encontra-se no Cândido, ou o otimismo. Ademais, leio: “O ateu que formula a questão do mal em relação a Deus, simplesmente se apropria de uma questão da Teologia Cristã e a apresenta como algo novo, de sua lavra, algo que deve chocar ou paralisar um crente, quando isso é uma das discussões mais antigas e profícuas da Teologia ao longo dos séculos. […] Tentar encurralar ou assustar um crente com a questão do mal equivale a pretender intimidar um peixe com água limpa. A Teologia nada nessas águas há séculos! Mas quem sabe ao ateu contemporâneo possa ser reconhecida ao menos a originalidade nessa apropriação espúria de uma questão teológica? Será? Não, nem isso. A verdade é que essa oposição entre a existência de Deus e do mal nada mais é do que uma questão tormentosa que atravessa a história da humanidade. A Religião desde sempre intuiu e constatou uma evidente tensão intelectual entre a fé em um Deus enquanto poder criador, sustentador e salvador de todo o real de um lado e a evidência da presença do mal no mundo de outro. As tentativas de conciliação e compreensão desse enigma desde sempre existiram. Da mesma forma, desde sempre aqueles que rejeitam o divino, o transcendente, se apropriam dessa problemática como se sua fosse e como se fosse algo estranho ao estudo da fé e o esforço de sua compreensão por via da racionalidade. O Deus judaico-cristão (e o monoteísmo), portanto, diversamente do que também se alardeia a quatro ventos sem qualquer base histórico-teológica, não foi a fonte dessas indagações, não ‘inventou a questão’, nem a oportunizou, mas obviamente a agudizou.” Assim, se o mal é “a ‘rocha do ateísmo’ ela já vem sendo dissolvida há séculos pela Teologia. Não passa de pó ou, no máximo, cascalho”.
Seria a negação de Deus, pela via da realidade do mal, uma disfarçada e inconsciente forma de agredi-Lo? “Lançar flechas contra um céu que se proclama vazio é uma contradição. Agredir um ente é reconhecer, implicitamente, sua existência”, opinou o teólogo Battista Mondin. Ou nas palavras de Albert Camus: “A revolta é uma ascese, ainda que cega. Se o homem revoltado blasfema, o faz na esperança de um novo Deus.” Dessa maneira, como bem ponderou o teólogo belga Adolphe Gesché, “se o não crente acusa Deus de não existir, a proposição ‘Deus não existe’ não é semanticamente ilógica? […] O verdadeiro problema está noutro lugar: entender e saber entender um grito, e um grito que, por si, tem um direito imprescritível. O direito do homem de expressar, mesmo de maneira chocante e além dos limites, de maneira ilógica, o escândalo do mal, gritando o mais forte que puder. E, portanto, de chegar a pronunciar o nome de Deus correndo risco da blasfêmia para expressar a sua recusa e a sua rejeição do mal.” Com seu grito, estaria o ateu desenvolvendo uma teodiceia do protesto? Arremata Gesché: “Se o homem às vezes lança seu grito a ponto de insultar a Deus, o crente não deve ser aquele que leva toda essa questão ‘até o altar de Deus’?”
Reconheço. Tanto para o homem cético quanto para o crente – e principalmente para este -, o mal é um mistério profundamente perturbador. Chegou-se a dizer, mesmo com exagero, que “o problema do mal é um peso descomunal para o teísta. É sua grande tragédia”. Frequentemente, o homem religioso clama aos céus à semelhança do antigo profeta: “Até quando, Senhor, clamarei eu, e Tu não me escutarás? Ou gritarei a Ti: Violência! E não salvarás? Por que me fazes ver a iniquidade, e a opressão? Destruição e violência estão diante de mim” (Habacuque 1:2, 3). Clamor parecido o poeta Castro Alves registrou nos belos versos de “Vozes d’África”: “Deus! ó Deus! Onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes embuçado nos céus? […] / Onde estás, Senhor Deus?…” O homem nunca soube lidar direito com o Deus absconditus. Somente na dimensão da fé ele consegue chegar até o “altar de Deus” para ouvir dEle as incomuns respostas. Ou não ouvir nada: apenas crer e confiar.
Comentaram por aí que “o mal é um efeito indesejado do livre-arbítrio”, “uma obra da liberdade”; ou, num universo moral, a possibilidade de tornar em ato aquilo que existia apenas como potência. Sendo assim, o mal, originalmente, foi uma questão de escolha, de desviar-se do padrão e do alvo. Ele nos atingiu dramaticamente, tornando-nos também responsáveis e uma parte desse problema cósmico. De fato, não se pode negar o potencial humano para tantas ações maléficas ao longo da história passada, no momento presente e, infelizmente, nos instantes futuros que ainda nos aguardam. Todavia, além de nós, alguém mais teria alguma responsabilidade pelo mal? Numa relação de transferência de culpa, como o fizeram Adão e Eva (Gênesis 3:11-13), os ateus diriam que, se Deus de fato existisse, Ele seria o grande Réu, pois Sua presciência e onipotência poderiam ter evitado a manifestação do mal no Universo. E se Deus não o evitou, por que ainda permite tanto sofrimento injustificável na Terra? Não sejamos apressados quanto a nossas conclusões e acusações. Não queiramos dar respostas irrefletidas e simplistas para um enigma grandiosamente misterioso e desafiador. Este não é um tema tranquilo, no qual se possa pensar balançando-se numa rede.
Reporto-me a Jesus. Se existe alguém que poderia apresentar alguma resposta acerca desse enorme dilema, seria Ele. Certa vez chegaram a Lhe perguntar: “Senhor, não semeaste Tu no Teu campo boa semente? Como então está cheio de joio? Respondeu-lhes Ele: Um inimigo é quem fez isso” (Mateus 13:27, 28). Ao lidar com o mal, Cristo não entrava em discussões teóricas, mas procurava agir pelo lado do bem. Toda a Sua breve vida neste planeta foi uma constante luta para eliminar o sofrimento e a dor do mundo. Viveu para nos esclarecer que existe uma forma de triunfar sobre o mal: acatar a solução que o homem tanto repudia, qual seja, o trabalho redentor de Deus em cada membro da raça humana. Aqui, eu paro com todas as minhas elucubrações filosóficas. Eu incorporo a resposta de Jesus, aceitando o fato de que eu não tenho a explicação do porquê do mal, mas posso ter acesso à história do porquê. Pelo caminho da revelação – caminho por onde a maioria não deseja passar –, procurarei entender a narrativa do mal até a sua esperada erradicação definitiva.
Voltando à revista Veja: “De onde vem o mal?” ou “por que o mal existe?” Queremos explicações ou soluções? Já não seria tempo de mudarmos a pergunta, reformulando-a? Não seria melhor nos questionarmos: De que forma eu consigo eliminar o mal da minha vida? Fatalmente não será por meio de uma insatisfatória teodiceia (nos moldes leibnizianos); tampouco mediante enganosa antropodiceia (colocando toda a responsabilidade sobre os ombros do ser humano). Racionalizações nunca nos salvarão das garras do mal. Não sou ingênuo em pensar que a humanidade melhorará indo na direção do bem. A história e os fatos quotidianos testemunham de uma piora crescente da natureza humana, cada vez mais perversa. Contudo, e apesar disso, eu acredito que o mal terá seu fim num evento escatológico antevisto pelo teísmo cristão (Apocalipse 21:1, 4). Enquanto aguardo esse acontecimento, não deixo de crer na transformação do mal em bem, quando, pelo livre-arbítrio e pela graça espiritual que lhe é concedida, o ser humano resolve trocar a escuridão pela luz. Essa possibilidade luminosa está aberta a todos nós.
Por curiosidade e desejo de saber, eu posso inquirir de onde vem o mal. Aylan, sua família e os milhões de sofredores deste mundo talvez não achariam a pergunta relevante. Para aqueles náufragos, o mal chegou pela via da humanidade ora violenta, ora indiferente. Quem sabe, ao invés de perguntar, teriam suplicado ao mundo e a Deus: “Livra-nos do mal!” Crentes ou incrédulos, não é isso que todos nós queremos?

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