Após reforma de 2000, perícia obrigatória em autores de crimes graves foi extinta; "98% dos casos não passam por avaliação", diz coordenador de núcleo forense da USP
A psiquiatria forense ganhou força ao explicar os principais crimes contra a vida no País. Nos casos noticiados pela imprensa, como Maníaco do Parque , Richtoffen ePesseghini , a conclusão de uma avaliação psicológica pôde servir como resposta à incredulidade da opinião pública. No entanto, sua função está longe do desejado pelo coordenador do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense (Nufor) da Universidade de São Paulo (USP), Antônio de Pádua Serafim. “Mais que 98% dos casos de crime graves de São Paulo não passam por perícia, ou seja, não têm acesso à avaliação psicológica”, afirmou.
A prática de examinar um suspeito de cometer um crime grave ainda no processo criminal – logo após sua prisão ou apreensão – é pouco valorizada como ação preventiva no Brasil. A participação de psiquiatras forenses, que ocorre de forma seletiva há mais de 10 anos, segundo Serafim, enfraqueceu o filtro das portas dos presídios. Criou-se uma convivência forçada entre detentos e psicopatas anônimos, que sem o tratamento adequado voltam para a sociedade com índice de reincidência acima dos 45%, em média mundial. “Os psicopatas são os primeiros a saírem do presídio porque se comportam muito bem, são invisíveis lá dentro”.
O psiquiatra explicou que, em 1998, havia a obrigatoriedade de um estudo criminológico no Estado de São Paulo. “O indivíduo preso por crimes graves ficava 45 dias no Centro de Observação Criminológica. Desde 2000, com a queda da obrigatoriedade, a avaliação só é realizada após um pedido durante a fase de inquérito policial, no processo ou na fase de execução”.
Como no caso da Suzanne Von Richtoffen, condenada a 39 anos pela morte dos pais em 2002 . “Ela só enfrentou uma avaliação porque a defesa pediu progressão de pena”, disse Serafim. O objeto que poderia criar um perfil e guiar a Polícia Civil em futuras investigações virou um instrumento estratégico nos tribunais.
A ausência de um mapeamento da saúde mental de penitenciários é considerada uma “panela de pressão” por estudiosos, já que sua dimensão é uma incógnita para os órgãos responsáveis. E o problema alcança projeções nacionais. Questionado pelo iG , o Ministério da Justiça informa ter apenas um estudo populacional, com a distribuição em unidades prisionais e sexo. “A informação de quantos [detentos] sofrem transtornos psiquiátricos ainda é desconhecida”, explicou a assessoria. Segundo o núcleo especializado da USP, considerando um estudo comparativo com a média mundial, entre os 508 mil presidiários do País, 30% sofrem algum transtorno de personalidade.
“Contar é uma forma de existir”
Debora Diniz, pesquisadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gêneros), decidiu dar voz aos 3.989 criminosos inimputáveis do País. Por razão de doença ou deficiência mental, esses não recebem pena e cumprem uma medida de segurança (com possível restrição de liberdade) acompanhada por tratamento psicológico obrigatório em um dos 23 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) e três alas de tratamento (ATPs).
O País enfrenta, segundo Debora, um grave sistema penal em um Estado que só aumenta suas malhas de penalidade. “É uma circulação de pessoas. Eu me pergunto o que é que estamos fazendo com eles lá dentro (das unidades prisionais)”. Na pesquisa “A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil”, publicada em janeiro a partir de um convênio com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, Deborah expôs um cenário de preocupação e números alarmantes. “Contar é uma forma de existir para as políticas públicas”, explicou.
Para a pesquisadora, há inúmeros equívocos na proteção desses chamados ‘loucos’ que vão além da longa permanência e da ausência da liberdade. Atualmente, 18 pacientes estão internados há mais de 30 anos e enfrentam “regime de abandono perpétuo” e 606 (21%) estão privados de liberdade há mais tempo do que a pena máxima para a infração cometida. Em média, um em cada quatro não deveria estar nos estabelecimentos de custódia seja por falta de periculosidade ou por cumprimento da pena.
É o caso do paciente Almerindo Nogueira de Jesus, um “ladrão de bicicleta” com retardamento mental que está internado no HTC de Salvador (BA) há 32 anos. Ele foi detido no dia 22 de setembro de 1981, quando roubou uma bicicleta de um jovem. Almerindo foi apreendido e enviado ao manicônio judiciário. Debora explicou que a infração penal jamais garantiria prisão, mas tratamento ambulatorial. “Mas pelo fato de ser louco, nos mostra como estamos aprisionando a loucura”.
O relatório denunciou que a ausência de unidades prisionais especiais em sete Estados, entre eles Acre, Amapá, Roraima e Tocantins, pode mascarar uma realidade ainda mais assustadora. “Se um sinal ruim é a existência desses espaços [que não fornecem o tratamento adequado], sinal absurdamente preocupante é o que está acontecendo nos Estados onde não têm. Ainda não sabemos nada”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário