A possibilidade de interferir no curso de algumas enfermidades genéticas trouxe qualidade de vida para portadores e suas famílias
Até bem pouco atrás as doenças genéticas raras vinham sendo enxergadas da mesma forma que eram estudadas pela ciência: de maneira absolutamente isolada. Não é de se admirar. Algumas são tão incomuns que seus portadores somam poucas dezenas e muitas delas são, além de incuráveis, impossíveis de tratar.
Esse caráter infrequente e complexo contribuiu para torná-las o que os médicos chamam de “doenças órfãs”, ou seja, que recebem menos atenção, esforços e investimentos por parte das autoridades de saúde e da indústria farmacêutica.
Na última década, entretanto, os esforços de concentrados centros de pesquisa entidades de portadores destas doenças resultaram em recursos capazes de identificar mais rapidamente e até tratar algumas delas – como é o caso das doenças de Gaucher e de Fabry, e de alguns tipos de mucopolissacaridoses. A mesma mobilização que suscitou diagnósticos e tratamentos mais eficazes para doenças incapacitantes e letais, culminou no Dia Mundial das Doenças Raras, comemorado hoje (28).
“Essas doenças são vistas de forma individual, mas se somarmos todas, a frequência delas fica em torno de 1 para 5 mil, o que significa hoje aproximadamente 40 mil brasileiros” afirma o geneticista Roberto Giugliani, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Giugliani participou do 4º Congresso Latinoamericano de Doenças Lisossômicas (Colatel), encerrado domingo (27) em Natal (RN) e onde foram discutidos o diagnóstico e o tratamento de doenças genéticas raras.
O conhecimento acumulado com o estudo da genética e, na última década, do genoma humano, mostrou que a origem de todas essas doenças está em um ou mais dos 20 mil genes que carregamos no corpo. Cada ser humano, explica Giugliani, carrega entre 3 e 5 genes defeituosos. Volta e meia, um homem e uma mulher portadores dos mesmos genes com defeito se encontram, se relacionam e tem filhos. Pode ser o início de alguma doença grave, incapacitante e por vezes letal.
“Muitas dessas doenças se manifestam por meio de sintomas facilmente confundidos com problemas mais simples. Por conta disso, os portadores peregrinam por dezenas de especialistas até obter um diagnóstico preciso” explica Gregory Pastores, geneticista e professor da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos.
Um bom exemplo disso é a Doença de Fabry. Causada pela ausência de uma enzima envolvida no metabolismo das gorduras no organismo, ela gera uma série de sintomas que, se observados de forma isolada, podem ser confundidos com indícios de outras doenças de tratamento simples e fácil resolução. Alguns portadores levam décadas para descobrir o que tem.
“Pessoas com essa doença sentem, desde pequenas, dor e formigamento nas mãos e nos pés. Os médicos geralmente diagnosticam isso como dores normais do crescimento e jamais pensam em Fabry” diz a pediatra e geneticista inglesa Uma Ramaswami, do Hospital da Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
Além dos testes já existentes – muitos feitos por meio da análise de sangue e urina – estão em estudo outras opções para identificar mais precocemente algumas doenças genéticas. Marcadores biológicos, como determinadas enzimas e proteínas presentes no sangue, são uma esperança.
“Em algumas doenças já temos marcadores biológicos bem identificados, mas infelizmente ainda não conseguimos dados suficientes para determinar quais são relevantes no diagnóstico precoce e quais não são” diz Johannes Aerts, bioquímico e professor da Universidade de Amstertan, na Holanda.
A rapidez no diagnóstico de uma doença genética tem um impacto importante na qualidade de vida de quem a tem. Se o problema pode ser tratado, iniciar o tratamento antes mesmo de aparecerem os sintomas pode mudar a vida do paciente. Caso não seja possível tratá-la, identificá-la precocemente ajuda a antecipar sequelas.
Para a família do portador, o impacto do diagnóstico também é benéfico. Primeiro porque põe fim a uma angústia de meses, até anos. Em segundo lugar, permite aos geneticistas informar e orientar os pais sobre o curso da doença e sobre como evitar o nascimento de outro filho com o mesmo problema. Qualquer interferência, afirmam os especialistas, é melhor do que não fazer nada.
Conheça algumas das doenças genéticas raras mais estudadas.
Doença de Fabry
É causada pela deficiência em uma enzima envolvida no metabolismo das gorduras no organismo, o que gera acúmulo de gordura em vasos sanguíneos e órgãos. Os sintomas dessa enfermidade são variados e se confundem com os de outras doenças, dificultando o diagnóstico. Portadores de Fabry tem queimação e formigamento nas mãos e nos pés, intolerância ao calor, pequenas lesões avermelhadas na pele, episódios de diarreia alternados com constipação e vista embaçada por conta de catarata. Pessoas com Doença de Fabry frequentemente sobrevivem à infância,mas têm um risco altíssimo de Acidente Vascular Cerebral (AVC), falência renal, infarto outras doenças cardíacas.
Doença de Gaucher
Também é causada pela inexistência ou pela produção deficiente de uma enzima envolvida no mecanismo de eliminação de uma substância chamada glicocerebrosídeo. Sem a eliminação adequada, essa substância se acumula em diversas partes do corpo, como baço, fígado, ossos e sistema nervoso central, gerando sequelas que vão desde problemas de coagulação sanguínea até retardo mental. A Doença de Gaucher é classificada em três subtipos, de acordo com a gravidade das sequelas neurológicas.
Mucopolissacaridoses
Nesse grupo de doenças, a enzima que não é produzida pelo organismo o torna incapaz de processar os glicosaminoglicanos (GAGs), açúcares complexos usados pelo corpo para estruturar diversos tecidos, como ossos, cartilagens, pele e vias aéreas. Quando os GAGs se acumulam no corpo, podem causar sintomas como macrocefalia (crânio maior que o normal), deficiência mental, alterações da face, dificuldades visuais e auditivas, rigidez das articulações, deformidades ósseas, insuficiência das válvulas cardíacas e aumento do fígado e do baço, entre outros. Existem 11 tipos de mucopolissacaridose, entre tipos e subtipos. Jáa há tratamento para os tipos 1, 2 e 6 e estão em estudo terapias para os tipos 4A e 3A.
Doença de Pompe
É causada pela atividade deficitária de uma enzima chamada alfa-glicosidase-ácida, responsável pela degradação de parte do glicogênio da célula. Essa deficiência faz com que o glicogênio se acumule dentro de minúsculas estruturas na célula provocando dano nos tecidos do coração, dos pulmões e do ossos. A doença tem sintomas variáveis, mas comumente gera fraqueza muscular, cardíaca e respiratória, levando à morte entre o começo da infância e a metade da vida adulta. Já existe tratamento para a doença, feito por meio da reposição da enzima deficitária.
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