Casos como massacre de Realengo e explosões de bueiros se tornam frequentes no Rio. Imagem de corredor com corpos de crianças marcou médicos de hospital
Uma cena no fim da manhã de 7 de abril ficará para sempre na memória de quatro médicos do Hospital Albert Schweitzer, em Realengo (zona oeste do Rio). Ao lado da emergência supermovimentada, nove crianças baleadas jaziam mortas, em nove macas, no corredor silencioso, encoberto por um biombo.
Do socorro às vítimas da tragédia da escola Tasso da Silveira, quando um atirador matou 12 crianças, essa é a imagem inesquecível e mais impactante para os médicos que participaram de uma “operação de guerra” para salvar meninos e meninas feridos a tiro.
“Avisei a todos: ‘Se vazar uma foto ou vídeo desse corredor, nós vamos atrás dos responsáveis’. A imagem de tantos corpos de crianças enfileirados é chocante. Em algum momento do dia, todo mundo foi para um canto, tomar água, chorar, respirar”, contou o diretor-técnico do hospital, Paulo Ricardo Lopes da Costa.
Eventos de múltiplas vítimas, como a do massacre de Realengo, estão se tornando mais comuns nos grandes hospitais do Rio. Recentemente, as emergências têm recebido em ondas pacientes de episódios como a explosão no restaurante “Filé Carioca”, os inúmeros estouros de bueiros e até dos deslizamentos de terra da Serra Fluminense.
Os médicos Dilson e Paulo, da direção do Albert Schweitzer, atenderam às vítimas de Realengo
“O que sempre choca mais é o trauma em criança”, disse o cirurgião vascular Luiz Alexandre Essinger, diretor do Miguel Couto, principal unidade municipal na zona sul do Rio.
Em situações de crise como essas, os médicos de emergência precisam ter organização, controle e raciocínio rápido. “Todos os hospitais de emergência estão preparados para atender a eventos de múltiplas vítimas. Mas é totalmente randômico, imprevisível”, disse Essinger.
A unidade dirigida por ele é muito procurada porque tem a “tríade” neurocirurgião/cirurgião vascular/ortopedista e fica a 1km do Heliporto da Lagoa – na ocasião das chuvas na região Serrana, 11 feridos chegaram ao Miguel Couto em um só dia trazidos, por via aérea.
Adrenalina e reconhecimento por foto em Realengo
Os diretores e chefes de equipe do Albert Schweitzer participavam da reunião rotineira de quinta-feira quando foram alertados da chegada de um menino uniformizado baleado. Em seguida, vieram outros. A reunião foi interrompida, e os médicos desceram para a emergência. “Nunca tinha vivido isso, é uma situação ímpar, adrenalina gigante. As pessoas falavam: ‘Tem muito mais crianças, muito mais!’ Elas chegavam em Kombis”, lembra Paulo.
Paciente espera atendimento em frente ao Miguel Couto
“Lembro bem de cada uma das seis primeiras crianças”, conta o cirurgião vascular Márcio Teixeira, que atuou no primeiro atendimento. Ele e os colegas passaram a seguir o protocolo de sequência de exames e atendimento imediato, avaliação da gravidade dos casos que toma de 15s a 20s, privilegiando os mais graves.
“Não parava de chegar criança, foram 24. Morreram doze, e 12 sobreviveram. Dez morreram aqui; duas na transferência, mas uma delas já tinha sofrido parada cardiorrespiratória”, contou Dilson Pereira, diretor-geral do Albert Schweitzer.
Nesse caso extremo, a mobilização envolveu toda a Secretaria de Saúde, que deslocou quatro helicópteros para um campo de futebol perto do hospital. Como a maioria dos tiros era na cabeça e lá não tem neurocirurgião, foi preciso estabilizar e transferir os feridos de helicóptero para outras unidades do Rio. “Não teve limitação de recursos. As ambulâncias e helicópteros vieram mais rápido que as condições de transferência. Todos os operados sobreviveram, as crianças que morreram tiveram lesão vascular, com tiro na cabeça, e não temos neurocirurgião”, afirmou Dilson.
Adler e Márcio trabalham na emergência do Hospital Albert Schweitzer
Outro momento crítico foi o reconhecimento das crianças, por dezenas de famílias, que lotavam o auditório, em busca de informações, amparados por profissionais de psicologia e assistência social. Só um tinha identificação, Rafael Pereira, com o cartão de ônibus no bolso. “Lembro porque é o nome de meu filho de 5 anos”, disse Paulo. Os médicos limparam os rostos e corpos e fotografaram as crianças, para os pais as identificarem.
“Preparamos os corpos para não ficar muito agressivo. Não ia levar para ver o que eu vi, não queria que o pai visse o filho naquele estado”, disse Adler Silva, chefe da emergência.
“Só duas crianças não foram reconhecidas, provavelmente por negação das famílias, que viam as fotos e não aceitavam. Diziam: ‘Essa não é sua irmã! Não tem esse sinal...’ Alguns entravam na fila de reconhecimento de novo e perguntavam: ‘Posso ver de novo?’ Muito triste”, recorda Paulo. “Eu vi essas fotos vinte vezes. Lembro a maioria dos rostinhos”, contou o diretor Dilson.
Nesse cenário, o diretor se lembra de uma presença reconfortante para parentes e médicos. “Independentemente da religião das pessoas, o arcebispo do Rio de Janeiro, d.Orani Tempesta, trouxe uma paz enorme a todos. Ele não rezou ou abençoou ninguém, mas confortou. Foi um diferencial, passou tranqüilidade e deu força”, contou Dilson Pereira.
“Medicina de Guerra”
Essinger, do Miguel Couto, vê semelhanças na atuação das emergências dos hospitais do Rio com “medicina de guerra”. “Atendemos a tiros de fuzil, arma de guerra; a vítimas de explosões de bueiros e de granadas; e a traumatismos de trânsito em que as pessoas chegam todas quebradas. Um acadêmico daqui levou fotos para o hospital onde foi trabalhar nos EUA, e os médicos nem acreditavam.”
“A diferença é que, se você vai à guerra, já está preparado”, disse Márcio Teixeira. “Guardadas as devidas proporções, vejo alguma semelhança com o que os hospitais devem ter vivido em Nova York no 11 de setembro”, compara Adler Silva.
Diferentemente de datas festivas, como Carnaval e Réveillon – quando há reforço de pessoal e o atendimento básico no local minimiza a ida aos hospitais –, em dias comuns, o atendimento a eventos de múltiplas vítimas é um desafio para os hospitais, principalmente pela imprevisibilidade.
Duas das vítimas da explosão do restaurante “Filé Carioca”, no centro do Rio, também foram levados para o Miguel Couto. Ambas já receberam alta. Um deles, Elídio Santos, saiu nesta quinta-feira, após chegar com o corpo cheio de estilhaços de cimento, cortes profundos no corpo e no pescoço e traumatismo craniano.
Os namorados norte-americanos David Melaugheim e Sarah Lari, feridos após a explosão de um bueiro em Copacabana, também foram levados para o Miguel Couto e lá se recuperaram de queimaduras em até 80% do corpo, no caso de Sarah.
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