terça-feira, 9 de agosto de 2011

Por que aceitamos a escravidão dos rótulos?

“Ser ‘boazinha’ fez com que eu deixasse minha felicidade de lado”, afirma psicóloga que demorou décadas para se libertar
“Eu sou assim mesmo”. Quantas vezes ouvimos - ou falamos - essa frase ao longo da vida, principalmente para justificar atitudes que alguns recriminariam? Dar ênfase muito grande a uma característica mais marcante que você tenha pode trazer consequências em longo prazo. Os rótulos, sejam eles dados por outras pessoas ou por você mesmo – a autorrotulação -, podem te prender a uma imagem que exigirá muito esforço para ser cultuada ao longo da vida.
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“Eu sempre fui a ‘boazinha’. Fazia tudo que me pediam e esquecia o que eu realmente desejava. Hoje, consigo ver que isso me trouxe diversos danos”, conta a psicóloga Andrea Pavlovitsch, 35. Por muito tempo, ela aceitou o rótulo como uma definição real sobre sua personalidade. E acredita que, se tivesse descoberto antes os problemas que isso causava, teria curtido mais a sua própria vida. “Deixar de ser eu mesma e de tomar decisões importantes foi muito ruim. Às vezes, você olha para sua vida e vê que poderia estar mais evoluída, ter um presente melhor. Poderia ter feito muito mais coisas que te dessem prazer, ao invés de sempre fazer os outros felizes.”
A restrição que o rótulo traz é um problema recorrente aos que se definem ou são definidos por apenas um aspecto de sua personalidade. A psicóloga clínica e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) Blenda de Oliveira explica que o rótulo prejudica o relacionamento entre as pessoas. “A relação fica comprometida, carente de espontaneidade e flexibilidade. Você só pode ser uma coisa. Suas escolhas são fiscalizadas para que sejam compatíveis com o seu rótulo. Se você é o ‘inteligente’, por exemplo, não pode cometer enganos ou erros. Não é permitido.”
Zona de conforto
“O questionamento é muito difícil, doloroso até. Se você não se questiona, não sai daquela zona de conforto onde você já sabe tudo que pode acontecer”, avalia a psicóloga Juliana Corazza Scalabrin. A zona de conforto é aquela em que a gente se explica, ainda que pra gente mesmo, com o famoso “eu sou assim, não tem jeito”. Mesmo que essa zona de conforto não seja tão boa assim. “Ser muito legal com as pessoas, por exemplo, pode te fazer deixar suas escolhas de lado. Não é bom, mas você já sabe a rotina, como tudo vai acontecer. Não terá que lidar com uma situação inusitada, não terá que decidir algo. Os outros que decidem e você apenas concorda”, completa.
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Ser legal era exatamente do que Andrea se orgulhava. “Eu tinha um sentimento de vaidade. Pensava: ‘olha como sou legal, como todos gostam de mim’”, explica. Ela se justificava para si mesma e para quem questionasse sua mania de se anular dizendo que aquela era sua maneira de ser. “Eu sou assim mesmo. Repetia isso até para minha terapeuta. Eu me autorrotulava de ‘a boazinha’ desde muito nova. Achava que era uma coisa boa. E também era o que eu sabia fazer.”
Foi o incômodo em sempre ver suas vontades deixadas em segundo plano que fez a psicóloga ter força de vontade e mudar. “Fazia muita coisa contrariada. Queria ir ao cinema, mas me contentava com outra coisa porque eu era legal e topava qualquer coisa. Não impunha minha vontade nunca. Chegou um momento em que percebi que vivia para satisfazer a vontade dos outros. Li um livro sobre o assunto e resolvi mudar. Não queria mais ficar incomodada fazendo coisas que não tinham nada a ver comigo.”
Blenda afirma que é justamente através do sofrimento e do incômodo que a pessoa começa a questionar sua realidade. “Questionar é o início de tudo. Você começa a perceber que o rótulo traz uma falta de flexibilidade. A rotulação pode ser fonte de problema e tristeza”, diz.
Consumismo assumido
Mas nem todas as pessoas se incomodam com os rótulos. É o caso da educadora Crystiane Leite, 24, que se define como consumista assumida. Gosta de comprar e não se incomoda com possíveis críticas. “Sinto muito prazer com a atividade de comprar. Às vezes, me sinto culpada comprando coisas que não preciso, e penso que poderia ter usado o valor da compra em algo mais útil”, confessa. Por isso, Crystiane afirma que doa o que compra por impulso. Ela confessa que costumava ouvir com frequência que comprava coisas desnecessárias. Hoje, nem tanto. As pessoas estão mais habituadas ao seu jeito de ser.
Apesar de não se sentir incomodada e saber que é muito mais do que apenas uma de suas características, ela admite que muitas pessoas enxergam só o que está à sua frente. “Uma das minhas características é gostar de comprar, mas sou mais que isso. O problema é que muita gente, por puro comodismo, prefere olhar apenas certos pontos e acham que a pessoa é só aquilo”, afirma Crystiane.
Juliana diz que um benefício pode ser observado com a rotulação. “Algumas pessoas acabam inseridas em determinados grupos com uma característica em comum. Muitas vezes isso não traz problemas e representa uma possibilidade de inserção”, explica. Mesmo admitindo que o rótulo pode ter seu lado positivo, ela alerta para o fato de que ele deve ser apenas um instrumento e não um fonte de submissão ou restrição. “É preciso tomar muito cuidado para não se tornar um ser humano restrito, dentro de um grupo restrito de pessoas.”



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