quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Aborto de bebês sem cérebro é decidido por juiz e não por médico


A interrupção da gestação de bebês com anencefalia não foi julgada pelo STF. Veja como ficou a vida de Michele Gomes após o aborto


A anencefalia é diagnostica por meio de um ultrassom na 12ª semana de gestação
Mesmo desejando diariamente a maternidade, e tendo se preparado para engravidar por um ano, Michele Gomes de Almeida, 30 anos, faz parte da estatística de mulheres que interromperam a gestação no Brasil.
Ela teve de lidar com toda a problemática do aborto aos cinco meses de gravidez, depois de descobrir que em seu ventre crescia um bebê sem cérebro – condição chamada pela medicina de anencefalia.
No mesmo dia em que revelou que seu primeiro filho seria um menino, o ultrassom também mostrou que havia nele uma anomalia congênita grave.
“Vi que ele não tinha a parte de cima da cabeça. Foi uma dor que eu não sei descrever”.
A não sobrevivência do feto, neste e em outros inúmeros casos atendidos por ginecologistas do mundo inteiro, é uma certeza da obstetrícia: crianças anencéfalas sobrevivem muito pouco tempo fora do útero.
No Brasil, diferentemente de muitos países europeus, da Argentina e até do Irã, a decisão de antecipar ou não o parto nestas circunstâncias cabe à Justiça e não à mulher que recebe este diagnóstico.
Atualmente, se a grávida opta por não dar continuidade à gestação de um feto anencéfalo ela precisa iniciar um processo jurídico cujo desfecho, favorável ou não à interrupção, depende da decisão individual de um juiz.
A legislação vigente autoriza o aborto só em caso de estupro ou risco de morte à mãe. Não é falado claramente sobre a anencefalia, apesar da condição aumentar o risco de complicações físicas e psicológicas para a gestante, como explica o professor emérito de ginecologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Aníbal Fauntes: “além de todas as ‘feridas psicológicas’ que geram, os bebês anencéfalos são maiores e há maior incidência de deslocamento de placenta e complicações cardiovasculares importantes na mulher”.
Há sete anos, o assunto entra e sai da pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). A discussão ficou em suspenso até agora e não há uma diretriz uniforme para acolher as mulheres que chegam com fetos anencéfalos aos juizados. Após o parecer favorável dos ministros à legalização de outro tema polêmico – a união homoafetiva – tudo indica que o aborto em caso de anencefalia deve ser o próximo julgado pelo STF.
O aguardo pelo posicionamento do STF é vivenciado com expectativa e receio. De um lado, especialistas defendem a antecipação do parto. Do outro, entidades civis e religiosas que não concordam com a interrupção do que acreditam ser o início da vida.
O que é isso?
A causa da anencefalia ainda não é conhecida e existem diversas hipóteses para explicá-la – desde mutações genéticas até uma dieta pobre em ácido fólico. O destino dos bebês, no entanto, é inevitável, dizem os médicos.
“Uma parte significativa dos fetos, 65%, morre ainda no útero. Outra parcela tem os batimentos cardíacos cessados algumas horas após o trabalho de parto. Em casos raríssimos, em um número muito pequeno deles, o organismo permanece funcionando por, no máximo, 10 dias”, explica o especialista Cristião Rosa, secretário da comissão de Violência e Interrupção da Gravidez da Febrasgo – entidade que reúne as associações de ginecologia nacionais.
“Mas, mesmo nestas exceções, não há nenhuma interação da criança com o meio (choro, dor, visão)”.
Tudo isso faz da gestação de um bebê anencefálo uma “experiência de terror”, resume o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Thomaz Gollop.
“O diagnóstico é devastador para o casal, traz depressão, transtorno pós-traumático e complicações físicas. Submeter a mulher à obrigação de manter esta gravidez é submetê-la à tortura”, opina ele.
Nas mãos da Justiça
Michele – que nem sabia o significado da palavra anencefalia até ouvir da boca de seu médico que enfrentava a situação – passou 15 dias sem dormir, sem tomar banho e sem vontade de comer.
“Não queria encarar que o meu sonho tinha acabado, que mesmo tendo a maternidade como a maior vontade do mundo, eu carregava um filho que não sobreviveria fora de mim.”
“Já estava dilacerada, destruída. Os médicos diziam que eu corria risco de vida com aquela gestação. Também fui informada que decidir ou não pela continuidade daquela gravidez era um direito com prazo de validade.”Quase ao mesmo tempo em que tomou conhecimento daquele quadro de saúde grave, Michele descobriu também que, se esperasse mais, poderia perder o direito de interromper a gravidez antecipando o parto daquela criança.
Em 2004, ano em que Michele engravidou, vigorou por seis meses uma decisão provisória do STF em prol da interrupção da gestação em casos de anencefalia. Ela, e outras cerca de 60 mulheres, foram respaldadas por uma liminar e não precisaram depender da decisão de um juiz.
“Dois dias depois que antecipei o parto, a liminar foi cassada”, lembra. “Não consigo pensar como eu ficaria se, além de tudo que já passava, ainda tivesse que enfrentar um processo jurídico.”
Sem unanimidade
Não há números oficiais sobre quantas mulheres precisaram recorrer à Justiça para interromper a gravidez de fetos anencéfalos depois de derrubada a liminar que beneficiou Michele. Ainda que a jurisprudência hoje seja por liminares favoráveis à antecipação do parto, não são todos os magistrados que concordam com a medida.
Há dois anos, por exemplo, o defensor público de São José do Rio Preto, Rafael Bessa Yamamura, precisou recorrer à segunda instância do Tribunal de Justiça para que sua cliente, na época com 24 anos e seis meses de gestação, pudesse ter acesso à antecipação do parto.
“O casal nos procurou, já com todos os laudos médicos, inclusive relatando os danos psicológicos acarretados pela anencefalia. Tivemos o pedido negado”, lembra.
“Conseguimos reverter a decisão com o desembargador, mas o período de espera, de cerca de 20 dias, foi de muito sofrimento para aquela família.”
Decisão por dois caminhos
“Se o Supremo votar favoravelmente, criará uma situação de igualdade para todas as mulheres que desejam o acesso ao procedimento. Isso independerá, por exemplo, dos recursos que ela tem para pagar um bom advogado”, afirma a presidente da Comissão de Cidadania e Reprodução do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Margareth Arrila.
“Mas se o STF considerar que não se deve legitimar a antecipação do parto, todos os juízes passarão a negar”, afirma Arrila.
“Voltaríamos atrás em um processo que foi construído historicamente ao longo dos últimos 20 anos. Hoje, felizmente, o que predomina são as decisões favoráveis.”
Mesma dor
Para Michele Gomes de Almeida a liminar que a autorizou antecipar o parto não foi um remédio instantâneo para o sofrimento. Ela, que até o ano passado ainda dormia abraçada com as roupas do primeiro filho, ainda chora sempre que lembra o que passou.
“A barriga iria continuar crescendo, se mexendo, mas não teria meu filho comigo hoje. Minha decisão doeu, mas me permitiu começar de novo. Não precisei brigar na justiça para que outra pessoa decidisse quando era a hora de recomeçar.”
E Michele recomeçou. Dois anos depois, engravidou novamente. Temeu fazer os exames (mas fez todos) e – mesmo sem relaxar durante os nove meses – trouxe ao mundo Nicole. Três anos mais tarde, outra gestação, agora tranquila (e até com desejos). Yasmin, hoje com 3 anos, completou a família Almeida

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