Britânica de origem indiana não vê parentes há 30 anos, e
paquistanesa foi ameaçada de morte; há ao menos 8 mil uniões forçadas
por ano nos EUA e Reino Unido
Jasvinder Sanghera tinha 14 anos quando, um dia ao
voltar da escola, foi presenteada com uma foto de um homem adulto. “Esse
será o seu marido”, revelou sua mãe. A menina não ficou feliz, mas
também não foi uma surpresa. Ela já havia visto cinco de suas irmãs mais
velhas, igualmente cidadãs britânicas de origem indiana, passarem por
isso. Foram retiradas, uma a uma, da escola onde estudavam na cidade de
Derby, no centro da Inglaterra, para serem levadas para a Índia, onde se
casaram com estranhos.
Foto: Divulgação
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Sabatina James, filha de um casal paquistanês,
foi ameaçada de morte pela família por ter voltado fugida para a Europa
após abandonar seu casamento forçado no Paquistão
- Mulheres no Iêmen: Casamento infantil dificulta situação de mulheres no Iêmen
Entre 5 mil e 8 mil casamentos forçados ocorrem no Reino Unido a cada
ano, segundo estimativa do Ministério de Assuntos Domésticos britânico,
enquanto houve ao menos 3 mil deles nos EUA nos últimos dois anos,
segundo a Organização do Centro de Justiça Tahirih. De acordo com uma
força-tarefa britânica, 29% dos casos do ano passado no Reino Unido
envolveram menores, sendo a vítima mais nova de um casamento forçado uma
menina de 5 anos.
A Unicef, organização das Nações Unidas responsável pelos direitos
infantis, calcula que, no mundo inteiro, mais de 60 milhões de mulheres
atualmente entre 20 e 24 anos foram forçadas a se casar quando ainda
eram menores.
“Assim que percebi que meus pais organizavam minha viagem para a
Índia, para o meu casamento forçado, desesperei-me”, contou Jasvinder ao
iG. Ela chorou e implorou à mãe que a deixasse
terminar seus estudos antes de se casar, mas os pedidos foram em vão.
Sua mãe lhe disse que ela havia sido prometida ao noivo quando tinha
apenas 2 anos e, se não cumprisse a promessa, desonraria toda família.
Dias depois, com a ajuda de uma amiga e seu irmão, Jasvinder fugiu de
casa. “Não vejo a minha família há 30 anos. Creio que, se os visse,
tentariam me matar porque acreditam que eu os desonrei”, afirmou.
Foto: Divulgação
A britânica de origem indiana Jasvinder Sanghera, que fugiu de sua casa para evitar um casamento forçado
Anos mais tarde, depois de se esconder de sua família por quase uma
década, Jasvinder lançou o livro “Filhas da Vergonha”, contando sua
história. Ela também estabeleceu uma organização na Inglaterra, a Karma
Nirvana, para ajudar meninas e mulheres a fugir de situações parecidas
com a sua.
“Atualmente recebemos mais de 500 ligações por mês de meninas que
querem descobrir como evitar seus casamentos”, contou. “Entendemos a
situação e o risco, inclusive de vida, que elas correm ao pedir ajuda”,
afirmou. O próprio site
da organização tem um recurso "Hide this Page" (Esconda essa Página)
para que possa ser remetido imediatamente ao Google caso um familiar
entre no ambiente em que a menina está fazendo sua pesquisa online e
pedindo ajuda.
Casamentos por dinheiro
Um casamento é considerado forçado quando um dos envolvidos, seja o
noivo ou a noiva, não concorda com sua realização. Apesar de essa
prática ter raízes culturais, na maior parte dos casos a família da
noiva recebe dinheiro para prometer sua filha a um futuro marido. Em
outros casos, a filha pode ser prometida para que o pai se livre de uma
dívida ou obtenha mais status em sua comunidade.
Há também situações em que os pais prometem suas filhas para terem
certeza de que respeitarão as tradições religiosas conservadores que
defendem. Ao contrário do senso comum, os casamentos forçados não
acontecem somente nas comunidades muçulmanas. Eles também são uma
realidade entre hindus, budistas, comunidades chineses e cristãos
ultraconservadores. E ocorrem cada vez mais em países ocidentais por
causa do aumento da imigração de famílias que seguem religiões em que
casamentos entre membros de sua comunidade são arranjados quando eles
ainda são crianças.
É o caso de Sabatina James, filha de um casal paquistanês, que passou
a infância no Paquistão e a adolescência na Áustria, onde se adaptou
aos costumes ocidentais. Ela conta em sua biografia “My Fight for Faith
and Freedom" ("Minha Luta pela Fé e a Liberdade"), sem tradução no
Brasil, que, quando se mudou com a família para a Áustria, coisas
simples como aulas de natação e o uso de absorvente interno eram grandes
problemas em sua casa. “Meu pai dizia que eram coisa de prostitutas”,
disse Sabatina ao iG.
“
O
medo de sair na rua e encontrar a minha família, que me quer morta
nunca passou. Simplesmente não saio na rua sozinha até hoje”, diz
Sabatina James
Aos 15 anos, sua mãe decidiu que estava na hora de arranjar um
casamento para a filha, para que ela não se afastasse das tradições
muçulmanas. Ali começaram dois anos de discordâncias e violência entre
mãe e filha. Aos 17 anos, depois que seu pai ameaçou se matar caso
Sabatina não se casasse com um homem escolhido por ele, a jovem aceitou
ir de férias ao Paquistão, onde acabou tendo de casar.
Meses mais tarde, ela fugiu e voltou para a Europa. Ficou vários
meses escondida e, quando sua família a encontrou, a ameaçou de morte.
Sabatina se mudou para a Alemanha, mudou de nome, converteu-se ao
catolicismo e, com a ajuda de amigos e trabalhando como garçonete,
conseguiu restabelecer sua vida. “O medo de sair na rua e encontrar a
minha família, que me quer morta, porém, nunca passou. Eu simplesmente
não saio na rua sozinha até hoje”, contou.
Chaz Akoshile, chefe da Unidade Pública Contra Casamentos Forçados do
Reino Unido, afirma que os números oficiais provavelmente subestimam a
realidade. “É extremamente difícil conseguir dados específicos sobre
esse tema porque se referem a comunidades muito fechadas e, muitas
vezes, de casamentos infelizes e com casos de violência doméstica. E,
como se sabe, os dados sobre violência doméstica são apenas estimativas
porque são raras as mulheres que decidem dar queixa à polícia. Por isso
acreditamos que esses números não sejam completos”, disse durante o
evento Women in the World, em Nova York, em março.
Foto: Carolina Cimenti
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Jasvinder Sanghera (E) e Sabatina James (D)
participam de discussão sobre casamentos forçados durante evento Women
in the World, realizado no início deste mês em NY
Além de ajudar jovens forçados a se casas, a organização
chefiada por Akosville também trabalha para evitar que maridos e
mulheres desse tipo de união obtenham visto para residir no Reino Unido.
Nos últimos anos, o Reino Unido tem criado leis e estratégias para
combater os casamentos forçados e ajudar as vítimas. Na última década, o
Parlamento britânico caracterizou esse tipo de casamento como crime e
atualmente discute se também deve criminalizar pais, mães e parentes de
vítimas que as forçam a essas uniões ou as persuadem para aceitá-las
muitas vezes recorrendo a chantagens. Nos EUA, não existe nenhuma lei de
proteção às vítimas. “Sem legislação específica e mobilização política,
não há muitas opções para ajudar a proteger meninas e meninos nessa
situação”, alertou Anne Chandler, diretora da Tahirih.
Juntamente com os casamentos forçados, muitas vezes há também
bastante violência. Quando as meninas se negam a casar ou tentam fugir
de casa, suas próprias famílias se transformam em um grande perigo às
suas vidas. De acordo com o jornal The Guardian, há ao menos 12
“assassinatos de honra” por ano na Inglaterra - ou seja, pais e irmãos
que matam suas filhas e irmãs porque se negam a casar com o marido
prometido.
“O papel das mães e avós é fundamental. Na maior parte das vezes,
elas até mesmo dão seu consentimento ao assassinato por acreditar que a
filha ficou impura ao rejeitar a ordem de seus pais. Mas um crime é um
crime. Mesmo que seja religioso, continua sendo um crime. Por isso as
mães, mesmo sem sujar suas mãos, também devem ser consideradas
criminosas nesses casos”, concluiu Jasvinder.
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