Mulher deve reagir à violência verbal e psicológica e encontrar em si mesma a força para sair de uma situação abusiva
“Sempre tivemos muitas discussões. Fábio fica bastante irritado
quando contrariado. Xinga, me ofende, mas nunca tinha me agredido
fisicamente. Ontem, foi diferente. Ele estava com raiva de mim, me
empurrou e quando caí no chão me chutou. Levantei, mas ele me segurou
com força e me deu vários tapas no rosto. Sorte as crianças estarem
dormindo e não terem ouvido nada”. Este foi o relato que Eunice me fez
no consultório.
Foto: Thinkstock/Getty Images
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Compreender por que se tolera um comportamento intolerável é também compreender como se pode sair dele
A mulher foi extremamente maltratada pela violência do homem,
considerada banal no lar. No entanto, supunha-se que ela tinha que
aguentar e sofrer sem se queixar. Isso durou muito tempo. Na Idade
Média, por exemplo, o marido tinha o direito e o dever de punir a esposa
e de espancá-la para impedir “mau comportamento” ou para mostrar-lhe
que era superior a ela.
Até o tamanho do bastão usado para surrá-la tinha uma medida
estabelecida. Se não fossem quebrados ossos ou a fisionomia da esposa
não ficasse seriamente prejudicada, estava tudo certo. Hoje as esposas
ainda são vítimas de agressões físicas. Estima-se que nos Estados Unidos
a violência ocorra em pelo menos 3,4 milhões de lares. A mulher
americana é mais vítima de agressões físicas em casa do que de acidentes
de carro, assaltos e câncer somados. As estatísticas mostram que grande
parte dos ferimentos físicos e assassinatos ocorrem entre pessoas que
vivem juntas. No Brasil, uma em cada quatro mulheres sofre com a
violência doméstica.
Segundo um artigo do jornal americano New York Times, o comandante
das forças das Nações Unidas na Bósnia costumava se referir aos rugidos
noturnos das metralhadoras no centro de Sarajevo, em 1993, como
“violência doméstica”. Quase todos os homens que agridem suas mulheres
acreditam ter esse direito. Foi somente na década de 1970, com as
iniciativas das feministas, que se começou a estudar o impacto da
violência conjugal sobre as mulheres. Mesmo assim muitas continuam sendo
agredidas por seus maridos.
Numa relação amorosa é comum haver discussões, afinal, quando não se
está de acordo com alguém argumentar, mesmo de forma veemente, é um modo
de reconhecer o outro, de levar em conta que ele existe. Na violência,
ao contrário, o outro é impedido de se expressar, não existe diálogo. A
agressão física não acontece de uma hora para outra. Tudo tem início
muito antes dos empurrões e dos golpes. Um olhar de desprezo, uma
ironia, uma intimidação, são pequenas violências que vão minando a
autoestima da mulher.
A psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen, que escreveu um livro
sobre o tema, diz que quando um homem estapeia sua mulher a intenção
não é deixá-la com um olho roxo, e sim de mostrar-lhe que é ele quem
manda e que ela tem mais é que ser submissa. O ganho visado pela
violência é sempre a dominação. Marie-France acredita que atos de
violência física podem não ocorrer mais de uma vez ou podem se repetir,
mas quando não são denunciados há sempre uma escalada de intensidade e
frequência. É suficiente, a partir daí, fazer lembrar a primeira
agressão por meio de ameaças ou de um gesto, para que, segundo o
princípio do reflexo condicionado, a memória reative o incidente na
vítima, levando-a a submeter-se novamente.
A violência física inclui uma ampla gama de sevícias, que podem ir
de um simples empurrão ao homicídio: beliscões, tapas, socos, pontapés,
tentativas de estrangulamento, mordidas, queimaduras, braços torcidos,
agressão com arma branca ou com arma de fogo. “Por meio de golpes, o que
lhes importa é marcar o corpo, arrombar o envoltório corporal da
mulher, fazer cair assim a última barreira de resistência, para
possuí-la inteiramente. É a marca do jugo, é o sinal que permite ler no
corpo controlado a aceitação da submissão.”, diz ela.
Não há necessidade do uso da força para subjugar o outro; meios
sutis, repetitivos, velados, ambíguos podem ser empregados com igual
eficácia. Atos ou palavras desse tipo são muitas vezes mais perniciosos
que uma agressão direta, que seria reconhecida como tal e levaria a uma
reação de defesa. Marie-France faz uma severa crítica aos psicanalistas
que consideram que as mulheres que permanecem na relação experimentam
uma satisfação masoquista em ser objeto de sevícias. “É preciso que esse
discurso alienante cesse, pois, sem uma preparação psicológica
destinada a submetê-la, mulher alguma aceitaria os abusos psicológicos e
muito menos a violência física.”
Antes do primeiro tapa as mulheres devem cortar o mal pela raiz,
reagindo à violência verbal e psicológica. Para isso é essencial que
elas aprendam a perceber os primeiros sinais de violência para encontrar
em si mesmas a força para sair de uma situação abusiva. Compreender por
que se tolera um comportamento intolerável é também compreender como se
pode sair dele.
E por que muitos homens agridem suas mulheres? Não é nada fácil para o
homem corresponder ao ideal masculino que a sociedade patriarcal lhe
exige – força, sucesso, poder. Homens e mulheres têm as mesmas
necessidades psicológicas — trocar afeto, expressar emoções, criar
vínculos. A questão é que perseguir esse ideal impede a satisfação das
necessidades, e a impossibilidade de alcançá-lo gera frustração. Está
aberto o espaço para a violência masculina no dia-a-dia. Essa ideia se
confirma quando os estudos mostram que a violência contra as mulheres
não é a mesma em todos os lugares. É muito maior onde se cultua o mito
da masculinidade.
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