sexta-feira, 27 de abril de 2012

Elas estudam, fazem bicos, batalham e estão transformando a relação com as “patroas”

A mineira de Belo Horizonte Luana Tolentino tem 28 anos, é professora de História e pesquisadora na Universidade Federal de Minas Gerais. Ama o que faz e acredita que tinha vocação para professora “desde sempre”. Política, literatura e música são paixões. Na adolescência, já lia Antonio Callado, Clarice Lispector e Dostoievsky. Construir esse currículo, no entanto, não foi nada fácil. Dos 13 anos até entrar na faculdade Luana se bancou trabalhando em ‘casas de família’, como mensalista, faxineira e babá.
Vera Godoy
A professora de História e pesquisadora Luana Tolentino se bancou trabalhando em casas de família por anos
“Matei e enterrei essa fase porque não é minha vida”, conta. “Eu não vejo problema no trabalho doméstico. O que eu não quero lembrar é a forma como fui tratada. É uma profissão que envolve muita dor e sofrimento”, diz a historiadora.
Luana participou das pesquisas da Rede Globo para a construção de um dos núcleo de protagonistas da novela “Cheias de Charme”, o de empregadas domésticas. Mas prefere não assistir à novela. Para ela, o trabalho doméstico foi um caminho para chegar à sua verdadeira vocação: “foi uma escolha pessoal para não aceitar a posição de vítima”, ressalta.
As empregadas domésticas da novela, Penha (Taís Araújo), Rosário (Leandra Leal) e Cida (Isabelle Drummond) são amigas e fazem um pacto para subir na vida. Seu lema: “dia de empreguete, véspera de madame”.
Nas redes sociais, o fato de apenas Penha ser negra gerou críticas. “Eu me sinto incomodada de reivindicar papéis de empregada para negras. Já teve muita empregada doméstica negra na televisão brasileira. Concordo com a crítica a brancas nesses papéis, mas o que eu quero mesmo é reivindicar mulheres negras fazendo papéis de médicas, enfermeiras, professoras, empresárias”, diz Luana.  
Ela é a favor das empregadas como protagonistas. “Se tem uma empregada na trama que bate o pé, que não aceita ser maltratada, acho positivo, embora eu ainda ache pouco. As empregadas sempre foram representadas de forma subserviente, submissa”, conta.
Nos primeiros capítulos, Penha já deixou claro que não pretende ‘engolir sapo de patroa’ e se sujeitar. A historiadora se identifica com a atitude: em uma das casas em que trabalhou na adolescência, trabalhava tanto que chegava a ficar com os pés rachados e feridos, ainda assim foi acusada de mexer nas coisas da patroa e fazer “corpo mole”. Não teve dúvidas: pediu demissão.
Noveleira, a empregada doméstica Maria Solange Nunes de Souza, 47 anos, está adorando “Cheias de Charme”, apesar de ter consciência dos limites da ficção. “As meninas na novela quase não fazem nada, né? Nossa vida é bem mais puxada”, diz a carioca. Ela ri também do figurino ousado de Rosário. “É meio extravagante, meio periguete. Dá problema na casa em que você está trabalhando, com certeza. Pega muito mal”. E não poupa críticas à Cida – “não pode ser banana como ela, que é boazinha e puxa-saco demais para segurar a onda do emprego”. Mas aprova Penha. “Ela tem filho, marido encostado, é mais real. É esquentada, mas é ela mesma. Eu sou mais como ela. Se tiver aguentar desaforo num emprego, eu não fico”. Mas hit mesmo é a expressão “empreguete”. “É maneiro! Não gosto quando as patroas falam ‘a minha empregada’. Secretária do lar e ajudante eu gosto, valoriza mais a empregada.”
Divulgação
Penha, Cida e Rosário fazem um pacto para subirem de vida juntas em "Cheias de Charme"
Luana também se incomoda com a expressão “minha empregada”. “Há uma relação de posse que não existe em nenhuma outra profissão, como se fosse uma reminiscência da relação ‘casa grande e senzala’ que insistimos em perpetuar. Você pode perceber que até as crianças falam isso. Eu ouvi da filha de 10 anos de uma patroa. ‘Você é minha empregada, se não estiver satisfeita tem gente querendo trabalhar’”.
Para o sociólogo Jefferson Belarmino de Freitas, a expressão “secretária do lar” termo era usado para “sofisticar” a figura da empregada doméstica, para mostrar que ela tinha mais habilidades do que limpar a casa. “Nos manuais de etiqueta, você percebe o ideal da doméstica perfeita: uma ‘governanta alemã’, instruída, cheia de habilidades, que saiba receber visitas. Mas a empregadora não quer pagar nem mesmo os poucos direitos trabalhistas”, afirma Belarmino, cuja tese de mestrado foi “Desigualdades em distâncias - gênero, classe, humilhação e raça no cotidiano do emprego doméstico”. Ele é pessimista sobre o impacto das novelas. “São tramas feitas para entreter, não são críticas. Acabam repetindo a velha fórum da comédia da vida privada”, diz.
Apesar de também achar a trama global um pouco fantasiosa, Aurineide Jesus Viana, 35 anos, está gostando da novela. Casada e mãe de uma menina de 9 anos, ela trabalha como faxineira para pagar a faculdade de fisioterapia. “O jeito da Penha bater de frente com a patroa não existe. Você responde ‘tudo bem’ e obedece, porque precisa do dinheiro. Faxineira, no dia a dia, não tem essa história de musa, de ficar trocando de roupa. Mesmo assim, a novela está legal”, acredita. Neide está mais para empregada do que para ‘empreguete’. “Não vejo problema nenhum no nome da profissão. Você é empregada de alguém quando está fazendo uma faxina”, diz.
Neide já trabalhou de domingo a domingo, mas agora voltou a poder dispor dos finais de semana e se prepara para o estágio, que vai ter que fazer no final da faculdade. “Minhas patroas são legais. Quando eu falei da faculdade ficaram felizes e me deram a maior força. Nenhuma ficou triste de me perder.” Neide acha que o mercado está melhor. Passou no “Fantástico” que daqui a uns dias, doméstica não vai existir. Só vai restar diarista, que eu acho melhor. É um trabalho mais valorizado.” Talvez o caminho não seja de ‘empreguete à madame’, mas para quem já trabalhou como metalúrgica, doméstica e operária, passar de faxineira a fisioterapeuta é só uma questão de tempo. 

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