Elas estudam, fazem bicos, batalham e estão transformando a relação com as “patroas”
A mineira de Belo Horizonte Luana Tolentino tem 28 anos, é professora de História e
pesquisadora na Universidade Federal de Minas Gerais. Ama o que faz e acredita
que tinha vocação para professora “desde sempre”. Política, literatura e música
são paixões. Na adolescência, já lia Antonio Callado, Clarice Lispector e
Dostoievsky. Construir esse currículo, no entanto, não foi nada fácil. Dos 13
anos até entrar na faculdade Luana se bancou trabalhando em ‘casas de família’,
como mensalista, faxineira e babá.
“Matei e enterrei essa fase porque não é minha vida”, conta.
“Eu não vejo problema no trabalho doméstico. O que eu não quero lembrar é a
forma como fui tratada. É uma profissão que envolve muita dor e sofrimento”,
diz a historiadora.
Luana participou das pesquisas da Rede Globo para a
construção de um dos núcleo de protagonistas da novela “Cheias de Charme”, o de
empregadas domésticas. Mas prefere não assistir à novela. Para ela, o trabalho doméstico
foi um caminho para chegar à sua verdadeira vocação: “foi uma escolha pessoal
para não aceitar a posição de vítima”, ressalta.
As empregadas domésticas da novela, Penha (Taís Araújo),
Rosário (Leandra Leal) e Cida (Isabelle Drummond) são amigas e fazem um pacto
para subir na vida. Seu lema: “dia de empreguete, véspera de madame”.
Nas redes sociais, o fato de apenas Penha ser negra gerou críticas.
“Eu me sinto incomodada de reivindicar papéis de empregada para negras. Já teve
muita empregada doméstica negra na televisão brasileira. Concordo com a crítica
a brancas nesses papéis, mas o que eu quero mesmo é reivindicar mulheres negras
fazendo papéis de médicas, enfermeiras, professoras, empresárias”, diz Luana.
Ela é a favor das empregadas como protagonistas. “Se tem uma empregada na
trama que bate o pé, que não aceita ser maltratada, acho positivo, embora eu
ainda ache pouco. As empregadas sempre foram representadas de forma subserviente,
submissa”, conta.
Nos primeiros capítulos, Penha já deixou claro que não
pretende ‘engolir sapo de patroa’ e se sujeitar. A historiadora se
identifica com a atitude: em uma das casas em que trabalhou na
adolescência, trabalhava tanto que chegava a ficar com os pés rachados e
feridos, ainda assim foi acusada de mexer nas coisas da patroa e fazer
“corpo mole”. Não teve dúvidas: pediu demissão.
Noveleira,
a empregada doméstica Maria Solange Nunes de Souza, 47 anos, está
adorando “Cheias de Charme”, apesar de ter consciência dos limites da
ficção. “As meninas na novela quase não fazem nada, né? Nossa vida é bem
mais puxada”, diz a carioca. Ela ri também do figurino ousado de
Rosário. “É meio extravagante, meio periguete. Dá problema na casa em
que você está trabalhando, com certeza. Pega muito mal”. E não poupa
críticas à Cida – “não pode ser banana como ela, que é boazinha e
puxa-saco demais para segurar a onda do emprego”. Mas aprova Penha. “Ela
tem filho, marido encostado, é mais real. É esquentada, mas é ela
mesma. Eu sou mais como ela. Se tiver aguentar desaforo num emprego, eu
não fico”. Mas hit mesmo é a expressão “empreguete”. “É maneiro! Não
gosto quando as patroas falam ‘a minha empregada’. Secretária do lar e
ajudante eu gosto, valoriza mais a empregada.”
Luana também se incomoda com a expressão “minha empregada”.
“Há uma relação de posse que não existe em nenhuma outra profissão, como se
fosse uma reminiscência da relação ‘casa grande e senzala’ que insistimos em perpetuar. Você
pode perceber que até as crianças falam isso. Eu ouvi da filha de 10 anos de
uma patroa. ‘Você é minha empregada, se não estiver satisfeita tem gente
querendo trabalhar’”.
Para o sociólogo Jefferson Belarmino de Freitas, a expressão
“secretária do lar” termo era usado para “sofisticar” a figura da empregada
doméstica, para mostrar que ela tinha mais habilidades do que limpar a casa. “Nos
manuais de etiqueta, você percebe o ideal da doméstica perfeita: uma ‘governanta
alemã’, instruída, cheia de habilidades, que saiba receber visitas. Mas a empregadora
não quer pagar nem mesmo os poucos direitos trabalhistas”, afirma Belarmino, cuja
tese de mestrado foi “Desigualdades em distâncias - gênero, classe, humilhação
e raça no cotidiano do emprego doméstico”. Ele é pessimista sobre o impacto das
novelas. “São tramas feitas para entreter, não são críticas. Acabam repetindo a
velha fórum da comédia da vida privada”, diz.
Apesar de também achar a trama global um pouco fantasiosa, Aurineide
Jesus Viana, 35 anos, está gostando da novela. Casada e mãe de uma menina de 9
anos, ela trabalha como faxineira para pagar a faculdade de fisioterapia. “O
jeito da Penha bater de frente com a patroa não existe. Você responde ‘tudo
bem’ e obedece, porque precisa do dinheiro. Faxineira, no dia a dia, não tem
essa história de musa, de ficar trocando de roupa. Mesmo assim, a novela está
legal”, acredita. Neide está mais para empregada do que para ‘empreguete’. “Não
vejo problema nenhum no nome da profissão. Você é empregada de alguém quando
está fazendo uma faxina”, diz.
Neide já trabalhou de domingo a domingo, mas agora voltou a poder
dispor dos finais de semana e se prepara para o estágio, que vai ter que fazer
no final da faculdade. “Minhas patroas são legais. Quando eu falei da faculdade
ficaram felizes e me deram a maior força. Nenhuma ficou triste de me perder.”
Neide acha que o mercado está melhor. “Passou
no “Fantástico” que daqui a uns dias, doméstica não vai existir. Só vai restar
diarista, que eu acho melhor. É um trabalho mais valorizado.” Talvez o caminho
não seja de ‘empreguete à madame’, mas para quem já trabalhou como metalúrgica,
doméstica e operária, passar de faxineira a fisioterapeuta é só uma questão de
tempo.
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