Luísa Lina Villa foi a primeira a descobrir que o vírus é o causador da maioria dos cânceres de colo de útero
Em tempos de Segunda Guerra Mundial, a matriarca dos Villa
não conseguiu estudar. Com o marido e duas filhas no encalço, a mãe
deixou a Itália e veio ao Brasil tentar uma nova vida. Após uma longa
viagem de navio, olhou para a caçula Luisa Lina Villa e disparou a
frase: “a educação será a sua missão”.
A menina obedeceu e fez dos livros e pesquisas seu objetivo de vida. E
quando virou adulta utilizou todo o conhecimento adquirido nas escolas
brasileiras para declarar uma nova guerra, desta vez pessoal.
O alvo escolhido pela italiana, naturalizada brasileira e bióloga pela USP foi o HPV.
As pesquisas pioneiras de Luisa, iniciadas na década de 80, mudaram a
forma da comunidade médica tratar as mulheres vítimas de câncer de colo de útero.
Seus dias e noites analisando as moléculas cancerígenas no microscópio
mostraram que o vírus, até então desconhecido, era o causador de uma das
doenças que mais mata no País.
Só em 2012, o câncer de colo do útero deve fazer 30 mil novas vítimas
(projeta o Instituto Nacional do Câncer). Descobrir que estes tumores
tinham relação com o HPV, em mais de 40% dos casos, foi o primeiro passo
para fazer do Papanicolaou um exame de rotina importante para
resguardar a saúde da mulher. Os achados de Luisa também foram o embrião
da vacina contra o HPV, hoje disponível na rede particular do País, mas
que protege pacientes do mundo todo contra este tumor maligno.
Para travar esta batalha, Luísa conta que precisou ser movida a
paixão. “Um amor incondicional à ciência”, define. Namoro antigo mesmo,
que foi despertado aos 11 anos de idade, quando surpreendeu os pais ao
fazer um pedido especial.
Sapos, apêndice e vestibular
Luisa estava sentada à mesa, esperando o jantar, quando o pai
comunicou à família que precisaria fazer uma viagem aos Estados Unidos.
Disse que ficaria alguns dias longe de São Paulo mas que poderia trazer
dois presentes, um para a filha mais velha, amante de poesia, e outro
para a mais nova, que era fissurada pela natureza.
“Minha irmã pediu goma de mascar, cadernos e bonecas, relíquias por
aqui”, lembra. Já Luísa disparou: “papai, quero um microscópio”.
“Desde muito pequena, eu tinha uma curiosidade latente em saber o que
tinha dentro das coisas. Estava na primeira série do ensino fundamental
e a professora havia ensinado o que era célula. Pirei com aquela
informação”, conta.
“Imaginei que com um microscópio eu poderia saber como tudo
funcionava. Quando meu pai trouxe o presente encomendado, comecei a
minha investigação.”
A primeira coisa que Luisa observou foi uma gota d’água. Depois, um
pouquinho do sangue tirado do indicador do pai. Em seguida, a casca da
cebola, o tecido do vestido da mãe, os insetos. Os restos de comida, os
sapos e muitas coisas passaram por aquela lente que aumenta (só) 5 vezes
o tamanho das coisas. Os anos também passaram e a paixão pelos bichos,
células e fibras aumentava.
Aos 14 anos, Luísa precisou tirar o apêndice e, em vão, a mãe tentou
convencê-la a deixar o órgão no hospital. “Levei para casa. Guardei no
formol. E vasculhava quase que diariamente aquelas fibras, aqueles
tecidos, aquelas maravilhas”, diz, gargalhando, ao lembrar da
insatisfação da família em ter de conviver com todos aqueles vidros
espalhados pela casa. A irmã dizia que os vidros só continham
"tranqueiras”, mas Luisa garantia que se tratavam de “micro-organismos
importantíssimos para a vida”.
Fazendo jus ao pedido da mãe de ter a educação como tarefa, Luísa se
preparava para escolher a carreira no vestibular. Biologia já era a
alternativa certa, mas ficou ainda mais evidente em uma aula de ciências
naturais.
“A professora explicou na aula sobre o DNA. Fiquei maravilhada e não queria fazer outra coisa na vida.”
Escolhas e propostas
Luísa Lina já estudava brincando – e não teve muita dificuldade para
em 1969 entrar na USP. Naturalizou-se brasileira porque sonhava em dar
aula em escola pública e este era uma condição do governo para contratar
professores. De forma voluntária – e para ir se acostumando – dava aula
de educação sexual para alunos do período noturno em um colégio do
Estado.
Com apenas 17 anos, ela já percebia que os homens e mulheres, de
qualquer idade, tinham uma dificuldade enorme em conhecer o próprio
corpo, assimilar o autocuidado e a importância das relações sexuais
seguras. Condutas essas que se mostrariam tão influentes, anos mais
tarde, quando Luisa passou a pesquisar o HPV e constatou sua transmissão
via sexo sem camisinha.
Nos corredores da USP, Luisa dividia essas experiências com a turma
da Biologia, majoritariamente feminina. “Eram tantas mulheres que o
pessoal da Física e da Medicina Veterinária (na época ainda com mais
meninos do que meninas) só passava o intervalo com a gente”, diz. Entre
um lanche e outro, ela começou um namoro com um dos futuros
veterinários, relação que durou 13 anos e virou casamento.
“Meu grande parceiro, até hoje. Depois de casados, ficamos 6 anos
juntos e acabamos nos separando. Com 35 de idade, quando as minhas
amigas pensavam no segundo filho, eu estava me divorciando sem ter
experimentado a maternidade.”
“É claro que eu sei o quanto a paixão pela ciência influenciou neste
meu destino. Já confrontei várias vezes estes caminhos que trilhei, mas
quando olho para trás, honestamente, não vejo como ter feito diferente”,
diz com toda sinceridade Luísa Lina Villa.
Se do útero da pesquisadora não sairiam herdeiros, com o seu trabalho
Luísa conseguiu deixar um importante legado. Suas pesquisas sobre
microorganismo estavam a todo vapor, mas mudaram de foco quando ela
recebeu um convite do Instituto Ludwig, uma das instituições
internacionais mais importantes do mundo, para pesquisar “como era o
câncer por dentro”.
“Eu nunca tinha parado para pensar nesta doença, mas a proposta me
aguçou. Escolhi como foco o câncer de colo de útero e o de pênis e,
desde então, estou debruçada neles”, pontua a pesquisadora
Dona Emozilia
O ano era 1982, as investigações começaram e no final daquela década a
relação entre HPV, sigla misteriosa, e câncer de colo de útero e pênis
já estava estabelecida, comprovada e publicada nas revistas médicas mais
importantes. Luisa passou a ser convocada pela indústria farmacêutica
para ajudar na busca por uma vacina preventiva. Na metade dos anos 90,
as doses já estavam prontas e a bióloga cientista referenciada nos
quatro quantos do mundo por ter conduzido a maior parte das pesquisas no
Brasil.
Nos anos 2000, Luisa e sua equipe começaram a investigar a associação
entre os tumores malignos na língua e pescoço e o mesmo vírus. Pela
primeira vez, a relação entre sexo oral desprotegido e câncer na boca
começou a ser divulgada.
A guerra contra o HPV, todos sabem, não foi vencida. Luísa ainda
espera que a vacina chegue à rede pública brasileira, que as mulheres
usem mais camisinha, que façam o Papanicolaou regularmente e que os
homens não precisem ter o pênis amputado após um diagnóstico de câncer –
quatro em dez causados pelo HPV – em estágio avançado. Mas ela sabe que
a sua história é de sucesso e, a todo momento, diz que nenhuma história
se faz sozinha.
Dedica as conquistas à mãe e sua frase “a educação é sua missão”, a
todos os envolvidos nas pesquisas que ela já fez, aos concorrentes que
trouxeram mais dados aos ensaios clínicos e ao professor da USP Ricardo
Brentani (falecido em 2011 e um dos principais nomes da ciência
internacional).
“Foi ele quem me soprou no ouvido, lá nos anos 1980, que a comunidade internacional estava de olho no HPV”, diz Luisa.
A pesquisadora elencou uma lista de nomes e, com entusiasmo, citou
dona Emozilia, faxineira do Ludwig, com quem a bióloga testava os
questionários sobre hábitos de vida antes de aplicá-los na população
participante das pesquisas.
“Ela que me direcionava, dizia que as perguntas eram difíceis, fáceis, aplicáveis ou não.”
Luisa também coloca como peças fundamentais na história o pai e seu
primeiro microscópio, que ainda está na sua penteadeira, com algumas
partes faltando, mas com capacidade de mostrar como é importante
conhecer as coisas por dentro.
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