Burocracias e incertezas do processo são compensadas com a chegada de um filho que nasce do coração
“Todas as relações afetivas são construídas: quando você está
grávida e tem uma ligação biológica com o seu filho, pode não perceber
muito esta questão porque ele está na sua barriga. Mas na adoção isto é
muito visível, e a construção desta relação pode ser muito bonita. Ainda
que, como todas na vida, apresente suas dificuldades”, afirma Maria
Beatriz Amado Sette, cofundadora da ONG Projeto Acolher.
Há mais de 10 anos ela e a psicóloga Márcia Pauli resolveram ir além do
trabalho que desenvolviam na Vara da Infância e Juventude de Santo
Amaro, em São Paulo, para desfazer preconceitos e construir uma nova
cultura de adoção.
Edu Cesar/Fotoarena
Mães contam o momento em que conheceram aqueles que se tornariam seus filhos
Mães contam o momento em que conheceram aqueles que se tornariam seus filhos
TRÊS HISTÓRIAS DE ADOÇÃO
Hoje elas reúnem mensalmente cerca de 100 pais e mães adotivos e interessados em discutir tudo que se refere ao assunto. Afinal, para a adoção cumprir o seu significado – acolher como filho legítimo, mediante ação legal, uma criança que não pôde ser criada pelos pais biológicos –, sentimentos como expectativas e incertezas devem ser trabalhados antes, durante e depois do processo, tanto em crianças como nos adultos.
Do ponto de vista jurídico, uma pessoa ou casal que quer adotar uma
criança deve dirigir-se à Vara de Infância e Juventude mais próxima de
sua casa e habilitar-se à adoção após a entrega de uma relação de
documentos e ingresso no Cadastro Nacional de Adoção. Nesta etapa,
define-se o perfil da criança desejada: sexo, idade, cor da pele e
condições de saúde. Após cerca de dois meses serão realizadas
entrevistas com uma psicóloga e uma assistente social para avaliação das
condições sociais e psicológicas do candidato a adotante. Então um juiz
decidirá pela habilitação ou não: se aprovada, a pessoa recebe um
certificado que atesta que ela já está na fila para a adoção.
O tempo varia de acordo com o que se espera da criança. “Se o
juizado entende que um casal ou pessoa que quer adotar tem o perfil,
deixa a criança com eles por um período para 'sentir' como eles irão se
comportar”, explica o advogado Rolf Madaleno, especialista em Direito da
Família. “Concede-se uma guarda, que é apenas uma fase de transição,
uma experimentação, concedida apenas se aquela adoção tem chances muito
boas de dar certo”.
Mas por que uma adoção pode “não dar certo”? Maria Beatriz afirma que
uma das maiores dificuldades é justamente a idealização. “As pessoas
idealizam uma criança de um jeito, mas, na verdade, as crianças chegam
com suas características físicas e psicológicas próprias e uma forma
peculiar de ser”, explica. “Para adotar é preciso estar consciente de
seus desejos e idealizações; nem todas as crianças podem ser adotadas
por todos”.
A psicóloga Lidia Weber, PhD em Desenvolvimento Familiar e autora de
diversos livros sobre adoção, entre eles “Laços de Ternura: Histórias e
Pesquisas de Adoção” (Editora Juruá), acredita que a adoção pode
resgatar uma nova forma de ver o mundo e a criança é capaz, sim, de
aprender como é dar, receber e sentir afeto – por mais que exista na
sociedade brasileira uma valorização cultural dos “laços de sangue”.
Esta visão acaba ecoando em posturas preconceituosas, que dificultam a
construção de uma relação de amor. “É preciso conscientizar a população
de que a adoção é uma necessidade e um direito da criança. Ela não serve
apenas para satisfazer a necessidade de casais inférteis”, afirma. De
acordo com ela, os problemas mais frequentes encontrados por pais e
filhos após a adoção são a revelação tardia ou inadequada (feita por
terceiros), ignorância em relação à história de sua origem, diferença de
tratamento em comparação a um filho biológico, discriminação e falta de
preparo das escolas e materiais didáticos a este respeito.
Coração de mãe versus obrigação do Estado
De acordo com o último levantamento do Conselho Nacional de Justiça, responsável pelo Cadastro Nacional de Adoção, o número de pessoas cadastradas no Brasil é quase seis vezes maior do que o de crianças e adolescentes disponíveis.
A situação esquenta a discussão sobre a demora no processo, o rigor da
Justiça e o próprio sistema. Se há tantos pequenos em condições
precárias, por que não facilitar? A primeira resposta seria a
preferência dos interessados por bebês brancos e com saúde perfeita, sem
irmãos. Mas há muito mais a considerar. “Tudo o que o Estado não quer é
que uma criança seja abandonada duas vezes”, explica o advogado Rolf
Madaleno. “Não se pode permitir que a adoção seja feita ao bel-prazer de
pessoas, especialmente de pessoas comprometidas emocionalmente”.
A chamada adoção à brasileira, feita informalmente de fato e
oficializada mais tarde, era comum no passado, mas hoje é vista como
crime pela Justiça. “Hoje, a Lei 12.010/09, erroneamente chamada de Lei
da Adoção – o correto seria Lei da Convivência Familiar, pois não trata
somente da adoção -, proíbe a adoção direta”, esclarece o Juiz da Vara
da Infância e da Juventude de Campinas, Richard Pae Kim. Todas as
pessoas que não podem ficar com uma criança devem entregá-la à Vara de
Infância e Juventude, para que o juiz, após um processo rigorosamente
dirigido com o intuito de preservá-las primeiramente em seu núcleo
familiar de origem (avós, tios), enderecem apenas em último caso a
criança à lista de adoção. No “calor” da situação, uma pessoa pode se
sentir disposta a cuidar da criança, mas não ter condições emocionais de
salvaguardar a situação em longo prazo.
Uma vez que a ideia é assegurar os direitos da criança, as restrições
são maiores especialmente no que tange à adoção por estrangeiros. “A
preferência é que a criança retorne ao seio da família. Se isso não for
possível, escolhe-se alguém preferencialmente de sua cidade natal. Caso
não dê certo, a lista é estadual. Se for para a lista nacional e ainda
assim não houver ninguém apto a adotar esta criança, só então a adoção
por estrangeiros é cogitada”, explica Madaleno. Geralmente são os casos
de adoções especiais, pois os futuros pais teriam melhores condições
para pagar tratamentos, ou de adoções tardias, porque muitos países são
mais abertos a este tipo de vínculo familiar.
É claro que para quase tudo existe uma exceção. E o sistema nem
sempre é perfeito. Carla Penteado, mãe de quatro meninas especiais e
coordenadora de um grupo de apoio à adoção especial, aponta que o
próprio cadastro do Conselho Nacional de Justiça pode restringir a
adoção de crianças com problemas físicos ou mentais. De acordo com ela,
falta detalhamento nas informações pedidas no cadastro. “Cem por cento
das pessoas aceitariam algum tipo de deficiência. Se não fosse pela
abrangência do termo como ele é colocado na ficha, não teríamos tantos
casos de crianças especiais esperando por adoção, exceto casos
gravíssimos”. Por outro lado, a nova lei estabelece que uma criança ou
adolescente não pode ficar mais de dois anos em programas de acolhimento
institucional (abrigos), dá preferência à família extensa ou ampliada
(tutela a parentes próximos), preserva a união de irmãos e assegura o
direito do indivíduo saber sobre suas origens aos 18 anos.
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