Locações do seriado da HBO, na Irlanda do Norte, vira destino turístico cult com direito a visita ao Trono de Ferro e banquete com “linguiças de sangue de Kalesse
Não é fácil achar Dark Hedges. É preciso seguir por uma estrada sinuosa ao longo de um trecho bem bucólico na Irlanda do Norte, passar por carneiros, vales e campos amarelos, cobertos de colza, até que, em um ponto entre as cidadezinhas de Ballycastle e Ballymoney ‒ se você conseguir manter os olhos abertos e tirar o pé do acelerador ‒ vai conseguir ver o belo corredor formado por faias centenárias. Aí está. Os galhos retorcidos para cima lembram os braços múltiplos da deusa hindu Durga; os mais altos chegam a atingir o outro lado da estrada, as folhas se sobrepondo, escondendo o sol. Os moradores da região garantem que o local é assombrado por um fantasma solitário conhecido como a Dama de Cinza.
Ultimamente, porém, ela tem tido companhia. "Ninguém vinha para essas bandas", informa o guia turístico David McAnirn em uma agradável manhã de junho. "Agora são centenas por dia". A razão da invasão está estampada nas camisetas de meia dúzia de turistas que tiravam fotos do lugar: " Game of Thrones ". A guerra pelo Trono de Ferro entre dinastias da imaginária terra de Westeros, retratada na série da HBO, se tornou um sucesso cult graças às intrigas, cenas de sexo e paisagens sobrenaturais ‒ e essas fizeram da Irlanda do Norte um ímã para aqueles que querem (e podem) ver de perto lugares como Dark Hedges, que aparece no lançamento da segunda temporada, quando Arya Stark, uma garota da realeza que se disfarça de garoto, foge dos inimigos em um carro de bois, ou Cushendun, a praia rochosa onde, alguns episódios depois, a sacerdotisa Melisandre dá à luz um assassino sobrenatural em uma caverna.
Em seu blog, o Conselho de Turismo da Irlanda do Norte aproveita a ocasião para convidar os espectadores a visitar as locações do seriado ("Explore o verdadeiro mundo de Westeros") e vem organizando promoções como a exibição dos episódios no Museu Ulster e no Titanic Belfast. Afinal, um filme ou série de TV podem, sim, aumentar a visibilidade de um país ‒ estão aí a Nova Zelândia com "O Senhor dos Anéis" e a Suécia com "Wallander" e a trilogia Millennium para provar. O sucesso de "Game of Thrones", porém, cuja quarta temporada começa a ser rodada em julho, é mais do que bem-vindo e significativo para a capital, Belfast, que há décadas é sinônimo de conflito.
Mais de 3.500 pessoas foram mortas na luta sectária entre legalistas britânicos (cuja maioria é de protestantes) e nacionalistas irlandeses (quase todos católicos) entre 1969 e 1998, quando foi assinado o Acordo da Sexta-Feira Santa. O mundo, incluindo a população do resto da Irlanda, se manteve afastado. "Passei grande parte da minha vida num set", afirma McAnirn, que era adolescente na época da violência em Belfast, "só que era um filme de terror".
Novas referências para se orgulhar
Em meados dos anos 90, pioneiros do setor do turismo como Caroline McComb que, ao lado do marido dirige a McComb's Tours & Coaches, quebravam a cabeça para achar um jeito de convencer os turistas de que Belfast era muito mais que o conflito de quase trinta anos. "Nova York tem seus arranha-céus; Sydney, a Opera House. Todo mundo aqui ficava deprimido porque achava que não tinha nada".
Hoje essa percepção mudou, e muito. Há o museu Titanic Belfast, que conta a história de como a cidade construiu o maior navio do mundo; o recém-reformado S.S. Nomadic, navio de apoio ao Titanic que transportou nomes como Charlie Chaplin e Elizabeth Taylor e o novo Centro de Visitas de Giant's Causeway, considerado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Belfast também começou a organizar eventos como o MTV Europe Music Awards de 2011, a cúpula do G8 deste ano e, no ano que vem, sediará a Giro d'Italia, uma das três principais competições do ciclismo profissional.
"Além de ser uma novidade, é muito bom poder olhar para frente e não para trás", conta McComb, que há pouco tempo começou a organizar passeios particulares de até nove horas pelas locações de "Game of Thrones" (por US$ 516 por pessoa), disponíveis no site Viator.com. "O pessoal da Irlanda do Norte está muito animado com essa perspectiva aberta pelo turismo." O que não quer dizer que o passado tenha sido esquecido. Essa é uma terra de fantasmas e, de vez em quando, ainda há motins esporádicos. Em dezembro, por exemplo, a violência se estendeu durante várias semanas porque o Conselho Municipal decidiu proibir o hasteamento da bandeira britânica, gerando descontentamento entre os legalistas.
Conforme a cidade começa a vislumbrar o futuro, se torna menos reticente em relação à sua história dolorosa. "Quando começamos a fazer os passeios", explica McAnirn, "era mais ou menos implícito que não se devia mencionar o conflito nem nada ligado a ele, tipo o presídio de Crumlin Road", referindo-se à detenção para a qual foram mandados legalistas e nacionalistas na época. Pois no mesmo lugar, em junho de 2013, várias mulheres elegantes e bem vestidas conversavam na sala onde antes os detentos recebiam sua correspondência; haviam homens de terno onde antes um policial controlava os movimentos de cada preso; garçons se movimentavam entre os clientes oferecendo salgadinhos com nomes que fazem os fãs do seriado sorrir ("hambúrguer de carne de veado do Ned Stark", "torta de cebola e queijo do Joffrey"). Do outro lado de um portão de ferro, uma mesa iluminada à luz de velas oferecia "minilinguiças de sangue de Khalessi" e "peixe Red Wedding com molho de manteiga". Na ponta da mesa, um leitão no espeto.
O bufê, oferecido para jornalistas e fãs mais ardorosos do seriado, foi organizado pelo Conselho de Turismo da Irlanda do Norte e o Northern Ireland Screen, uma agência pública que apoia o cinema e a televisão. O evento foi para comemorar a última fase da exposição itinerante dos objetos utilizados em "Game of Thrones": espadas, coroas, uma cabeça (peço desculpa aos devotos de Stark), ovos de dragão petrificados (só havia dois em exibição, já que a HBO deu o terceiro como presente de casamento a George R.R. Martin, autor dos livros que inspiraram a série) e o Trono de Ferro, no qual todo fã senta para posar para pelo menos uma foto. Em frente à multidão ‒ que incluía os atores Maisie Williams (Arya Stark), Isaac Hempstead Wright (Bran Stark) e John Bradley (Samwell Tarly) ‒ Peter D. Robinson, o primeiro ministro unionista da província, descreve a Irlanda do Norte: "Aqui é Westeros!"
Titanic em Westeros
Só que até os fãs mais radicais do seriado percebem que a Irlanda do Norte é muito mais que um cenário de locação. Belfast, por exemplo, já foi famosa por seus estaleiros ‒ detalhe que se torna óbvio toda vez que se olha para o rio Lagan e se vê os guindastes amarelos gigantescos de Harland e Wolff. Foi ali que o Titanic foi construído há cem anos. As máquinas, com quase 100 metros de altura e chamadas carinhosamente de Sansão e Golias, se tornaram um monumento ao auge industrial da capital. E em homenagem ao setor, há cinco anos a cidade começou a erigir um quarteirão inteiro à sua história marítima. Tudo gira em torno do Titanic Belfast, considerada "a maior experiência do mundo para os fãs do Titanic" ‒ que inclui nove galerias que retratam a vida do navio, desde sua construção até o naufrágio, em 1912. "Game of Thrones" é filmado no Estúdio Titanic, ali pertinho, que consiste no estúdio Paint Hall e os dois palcos de som de 2.230 metros quadrados utilizados na terceira temporada.
Embora o seriado seja bom para a Irlanda do Norte, há outros sinais, menos conhecidos, de progresso, como as mais de 60 escolas integradas. Eu fui a Belfast para investigar o que há por trás de seus muros, explorar a paisagem mítica de "Game of Thrones" e vislumbrar o futuro ‒ museus e centros de visitantes requintados, atrações que dão nova vida àquilo que foi conquistado pelo setor de construção de navios. A verdade é que o passado, o presente e o futuro do país se mesclam como as folhas de Dark Hedges. As sombras do passado têm um grande alcance, mas, aqui e ali, a luz consegue clarear o caminho.
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