Encantadores, divertidos e competentes no trabalho, esses indivíduos chamam pouca atenção, mas podem causar mais danos à sociedade do que os diagnosticados como psicopatas
Eis um enigma médico: quando um traço de uma doença pode
ser pior do que uma manifestação completa da enfermidade? Aí vai uma
dica: pior para quem? Suponha que não é com a pessoa doente que estamos
preocupados, mas com os amigos, familiares, colegas e clientes
do indivíduo.
Os autores do livro "Almost a Psychopath"
(Quase um Psicopata), recém-lançado nos Estados Unidos e ainda não
lançado no Brasil, sugerem que as pessoas que apresentam apenas algumas
das características mais perigosas de um psicopata podem custar ainda
mais caro para a comunidade do que aquelas que recebem o diagnóstico de
fato, já que os psicopatas parciais são muito mais penetrantes e
evasivos.
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Apesar de moralmente vazios, os quase psicopatas tentam se manter longe dos problemas jurídicos
"Os psicopatas fazem parte de nossa vida
profissional", escrevem os autores - o Dr. Ronald Schouten, que tem
graduação em Direito e Medicina e é psiquiatra da Faculdade de Medicina
de Harvard, e James Silver, que é advogado de defesa criminal.
A maioria das pessoas, porém, não corre riscos de
conhecer um desses criminosos profissionais; os especialistas estimam
que eles representam apenas cerca de 1% da população.
É muito mais comum cair nas garras de alguém de dentro do
espectro psicótico que tenha encanto, egoísmo, falsidade,
agressividade, espírito manipulador e falta de empatia suficientes para
fazer o que bem quer com a mente alheia – e normalidade suficiente para
não ser identificado.
Na verdade, o que esses autores chamam de "quase
psicopatas" são também chamados de "psicopatas bem-sucedidos", porque
muitas vezes eles se dão muito bem na vida, apesar do acúmulo gradual de
vítimas em seu rastro.
Schouten e Silver escreveram um livro de autoajuda
sofisticado, direcionado principalmente para tais vítimas – pais,
cônjuges e colegas de trabalho – mas também para qualquer pessoa que
possa sentir algum desses traços em si mesma. Os autores incluem uma
discussão detalhada dos processos de pensamento por trás de uma
avaliação psiquiátrica e uma visão geral de teorias ainda preliminares
de causalidade.
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Capa da edição americana do livro "Almost a Psychopath", que descreve os "quase psicopatas"
Os quase-psicopatas são intrinsicamente fascinantes; eles
podem ascender e decair na vida (certos rebentos das políticas e
finanças vêm à mente) ou simplesmente provocar sofrimentos em menor
escala, assumindo papéis de cônjuges controladores, colegas
manipuladores ou adolescentes incontroláveis.
No trabalho, eles podem ser competentes,
autodisciplinados e alcançar objetivos ambiciosos. Em casa, podem ser
encantadores e muito divertidos.
E por dentro, podem ser tão moralmente vazios quanto
qualquer psicopata de verdade, mas os quase-psicopatas são alertas o
suficiente para manter alguns de seus piores instintos sob controle,
permanecer empregados e ficar fora de problemas jurídicos relevantes.
Como agir quando um quase-psicopata faz parte de nossa
vida? Schouten e Silver sugerem alguns passos básicos, nenhum deles
particularmente surpreendente. Quem é pai de um quase-psicopata
certamente precisa recorrer a ajuda profissional. Talvez dados que
sugerem que as crianças podem superar comportamentos preocupantes possam
servir como um consolo por um bom tempo, mas é improvável que
Se você é amigo ou cônjuge de um quase-psicopata, deve
saber quando deve parar de negociar, afastar-se ou cair fora; o mesmo
vale para os colegas de trabalho e funcionários. Como os autores
enfatizam, os quase-psicopatas "fazem muito melhor o que fazem do que
nós ao tentarmos identificá-los e detê-los. E às vezes isso requer que
escapemos de uma situação ruim e permitamos que outros caiam em si
dentro de seu próprio ritmo".
Dentro do mercado financeiro e da política
Os políticos e financistas não são os únicos
profissionais que podem ser impulsionados para a estratosfera por suas
falhas psíquicas. É rotina ver homens e mulheres da ciência que voam
alto com o mesmo combustível, apesar de vários códigos profissionais e
da afirmação invariável de que eles fazem o que fazem para o benefício
duradouro da humanidade. No livro "Prize Fight" ("Luta pelo prêmio"),
também lançado nos EUA, mas não no Brasil. o Dr. Morton A. Meyers
apresenta um inventário completo dos comportamentos inglórios provocados
por esse amor pelos outros, evidência clara de que os transtornos de
personalidade abundam nas artes da cura e das ciências também.
A gama de más condutas levantada por Meyers inclui o
plágio e a fabricação de dados, como os ratos brancos que se tornaram
pretos com algumas pinceladas da caneta de feltro de um pesquisador. Mas
o verdadeiro assunto que Meyers aborda são os conflitos mais sutis que
vieram à tona quando pesquisas realmente importantes começaram a tomar
forma, e os atores principais se encontram fantasiando sobre aquele
telefonema de Estocolmo, um dos primeiros sintomas da doença chamada
"nobelite".
Dois casos desse contágio destrutivo, mas felizmente
incomum, afetaram jovens investigadores ambiciosos e seus orientadores,
igualmente ambiciosos. Em termos mais simples, os jovens fizeram o
trabalho pesado, enquanto os mais velhos receberam o financiamento, o
crédito e o prêmio. Membros da contenciosa equipe canadense responsável
pela descoberta da insulina em 1923, na verdade, acabaram passando
rasteira uns nos outros; as disputas que cercam o isolamento do
medicamento antituberculose estreptomicina em 1943 foram limitadas ao
âmbito jurídico, mas ressoaram durante uma década, amargurando todos os
envolvidos.
Mais recentemente, o combate em torno do desenvolvimento
da ressonância magnética não se deu entre professor e aluno, mas entre
pesquisadores consagrados. Meyers é professor de Radiologia e Medicina
da Universidade Stony Brook e conhece em primeira mão tanto a pesquisa
científica quanto algumas das personalidades envolvidas aqui. Embora sua
narrativa descambe um pouco para histórias pessoais e detalhes técnicos
opacos, ele pinta um retrato claro de uma disputa por glória e dinheiro
que se manifesta em manobras tão sutis quanto a omissão de uma nota de
rodapé e tão extravagantes quanto uma série de anúncios de página
inteira de jornal exigindo que o comitê do Nobel reconsidere uma
decisão.
Talvez alguns leitores consigam tomar partido nessa
batalha. Outros vão ficar com a sensação infeliz de que no caldeirão de
alta pressão que é a pesquisa médica moderna, o maior desafio para
muitos envolvidos pode não ser a própria ciência, mas alcançar e manter o
desprendimento e a integridade necessários. Talvez o bom comportamento
no laboratório mereça agora virar uma categoria em si no prêmio Nobel.
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