Lucas tem 13 anos, sempre foi bom aluno e quer ser biólogo. Ele também é autista, e sua mãe conta um pouco de sua história
O filho caçula da assistente financeira Paula Guimarães tem treze anos. Ele nunca foi diferente. Sempre foi o Lucas. Desde que era pequeno, ela percebia e nutria as necessidades particulares do menino, como tinha feito com a filha Renata e o enteado Thiago antes dele. Essas características não tinham nome. Para a mãe, sempre foram o jeito de Lucas. Seus traços individuais foram tão aceitos e trabalhados pela família que apenas aos seis anos de vida descobriu-se que alguns deles estavam ligados ao fato de ele ser autista.
“Você tem outros filhos, a vida é corrida, tem hora que não percebe. A gente morava em Cotia (Grande São Paulo), numa casa muito grande. Ele vivia correndo, se divertindo, e acho que isso encobriu essa deficiência que ele tinha de se comunicar com a gente. Ele conversava, é obediente, uma criança muito doce, sempre foi muito carinhoso”, lembra Paula. Mas no fundo, ela já se adaptava às necessidades de Lucas, antes mesmo de saber. “Eu saía com o Lucas na rua falando ‘isso aqui é uma farmácia, isso aqui é um supermercado’. Quem faz isso com o filho? Só uma mãe que vê que o filho tem uma deficiência. Eu não sabia explicar, mas via que ele não entendia. Ajudei muito, supri muito as deficiências dele”.“Ele pequenininho era uma criança normal, não chamava a atenção. O autismo é muito peculiar. Lucas adorava colo, por exemplo, coisa que nem sempre acontece. Teve um desenvolvimento rápido, andou com nove meses, falou na hora certa”, lembra Paula, que hoje trabalha na Associação de Amigos do Autista (AMA) em São Paulo. “De repente, deu uma parada de falar, mas você não percebe na hora, eu só notei lá na frente, quando a gente voltou pra ver o que tinha acontecido. Nessa época, ele tinha uns dois aninhos. Foi para o maternal, falava palavrinhas soltas, a gente até achou que a escolinha ia ajudar”. De qualquer forma, em pouco tempo Lucas estava falando bem novamente, frases completas, “bonitas, e quase nunca errava o português”.
Foto: Edu Cesar/Fotoarena
Paula Guimarães dá um beijo no caçula Lucas Ohara, de treze anos
Antes do diagnóstico, a família procurou orientação médica toda vez que alguma coisa chamou a atenção. Lucas teve problemas sérios com otites. O médico disse que isso atrapalhava a audição e, portanto, o desenvolvimento da fala. A primeira escola chegou a achar que havia algo de destoante no comportamento do menino quando ele tinha pouco mais de três anos. “Na época, não sei por quê, a gente levou ao neurologista. O médico diagnosticou Lucas como hiperativo. E ele é. Foi medicado, não fez a menor diferença. Ficamos com ele alguns anos, põe remédio, tira remédio, aumenta a dose, diminui a dose. Até que paramos de ir lá”. O tempo, as otites e os problemas de fala passaram.
A família se mudou para São Paulo e Lucas foi para uma nova escola. Dessa vez, no entanto, foi diferente. “A escola falou que quando ele não conseguia fazer a lição, ele se escondia. Então a gente pensou: ‘aí não é normal’. Se a criança não quer fazer a lição, ela briga. Mas se esconder preocupou a gente. É diferente de não querer fazer e ficar de birra. Aí tudo bem, eu ia brigar e pronto. Mas ele tava vendo uma dificuldade e fugindo”. A família então procurou um psiquiatra.
Autista
“O médico diagnosticou o Lucas como autista de alta funcionalidade. Na hora, me faltou o chão”, conta. Mas o cuidado do psiquiatra ajudou a família a não ficar sem ação diante do fato. “Ele falou que era provável que talvez o Lucas tivesse a possibilidade de ser alfabetizado. Assim, sem afirmar nada. Então do mesmo jeito que ele jogou um balde de água gelada, foi trazendo devagar, aos poucos, alguns caminhos”. O médico disse ainda que acreditava que Lucas podia frequentar uma escola, mas recomendou que a família desse uma parada antes para se organizar, e aconselhou também que procurassem a AMA. “Ao mesmo tempo em que ele deu a má notícia, deu boas também, então a gente saiu de lá menos mal”.
Paula não sabia quase nada sobre o autismo. “No começo, por mais que o médico tenha explicado, a gente ficou perdido e com medo. Eu pensava que meu filho ia sempre precisar de ajuda, e não sabia quanto tempo eu ia durar para cuidar dele”. Paula não queria passar esse medo para as demais crianças, que na época tinham 17 e onze anos. “Uma família unida sempre é melhor numa hora dessas. A gente chegou em casa e todo mundo já começou a procurar informações sobre o assunto. Hoje a gente conversa muito sobre isso. Mas no começo a gente não queria passar nossa preocupação para a Renata e o Thiago. Então falamos o mínimo necessário, só para eles saberem. Mas os dois acabaram indo procurar na internet o que era e ajudaram como podiam”.
O diagnóstico do irmão afetou, claro, a vida de Thiago e Renata, que hoje reclamam da falta de explicações do passado. “A Rê teve que começar a ir para a escola sozinha com onze anos de idade, porque eu tinha que levar o Lucas para a AMA. Eu sentei com ela e, morrendo de medo, expliquei, falei que ela estava pronta”, lembra a mãe. “Hoje, quando a gente senta e conversa, eles falam ‘pô, vocês não souberam explicar’. Mas é porque a gente tava perdido, não sabia, não queria que eles se preocupassem, queria entender melhor antes”.
Em retrospectiva, Paula confessa acreditar que no fundo sempre soube que havia algo de especial a respeito de Lucas. Quando as crianças eram pequenas, por exemplo, ela fazia livrinhos infantis para falar das particularidades da vida familiar. “Tenho 50 livros escritos e nenhum publicado, todos para crianças. Comecei porque minha família é diferente, ganhei um enteado com seis anos de idade, meu marido é viúvo. Aí tivemos a Rê. Então era uma diferença grande, comecei a fazer livrinhos sobre dificuldade do dia a dia de uma mãe. Sobre ciúmes, sobre não querer comer, todas essas coisinhas”. Mas quando Lucas nasceu, ela notou que ele não se interessava pelos livros só de texto e figuras. “Então fazia livros diferentes para ele mexer. Você supre sem saber o porquê. Eu fazia brinquedinhos pra ele interagir, conseguir que ele aprendesse, se interessasse, se concentrasse”, conta.
“Na nossa família, ele nunca foi tratado como autista. Leva bronca do mesmo jeito, mesmo quando eu já sabia o que ele tinha. Tem hora que é difícil. Mas a gente nunca cedeu, é um ponto de vista mesmo. Acho que ajudou muito a gente”, conta. O tipo de autismo de Lucas envolve comportamentos como descontrole quando ele se sente ansioso, por exemplo. “Antes de saber, quando ele tinha os chiliques dele na rua, pra mim era birra. E eu vou deixar fazer birra? Não vou. Depois de saber, continuei não deixando. Acho que isso ajudou muito ele. A gente não tratou diferente. Continua sendo o Lucas, continuamos amando ele”.
Para ajudar Lucas a lidar melhor com suas limitações, a família também promove pequenas situações para que ele exercite principalmente seu lado social. Faz pequenas alterações na rotina para que ele lide com as mudanças, por exemplo. “Ele se altera? Claro. Geralmente nessas situações ele começa a fazer perguntas sem parar, é a crise dele, fica perguntando, perguntando, não para”, explica a mãe. Recentemente, os dois começaram um “treino” para que ele sinta como seria ir sozinho para a associação. Ele andava na frente e a mãe um pouco atrás. Diante da proposta, Lucas ficou ansioso. “Começou a perguntar: ‘mãe, e se acontecer alguma coisa comigo? E se isso? E se aquilo?’ Ele começa a perguntar sem parar até que eu digo ‘chega, é assim que vai ser’. A crise dele é perguntar demais”.
Lucas na escola
Quinze dias depois do diagnóstico de autismo, Lucas já frequentava a associação, onde também foi alfabetizado. Logo, a coordenadora disse a Paula que achava que o menino tinha totais condições de ir também para uma escola. A família então encontrou um pequeno colégio de política inclusiva e linha Montessori, que a mãe julgou ideal para as necessidades de Lucas. Aos oito anos, já alfabetizado, ele entrou na primeira série de uma escola “normal”.
No primeiro ano, as notas de Lucas oscilaram. Mas no segundo ele passou a tomar um remédio para ajudá-lo na concentração. “Aí as notas dele subiram, nunca nem precisei estudar com ele”, afirma Paula. O ambiente da escola também ajudou o menino a se relacionar com outras crianças. Eram apenas onze alunos na classe, e a maioria crescendo junto e se conhecendo. “Sempre tem um ou outro que vira o pai ou a mãezinha dele, que o protegem”, conta. Paula acha graça ao lembrar que, quando Lucas estava na segunda série, chegou um aluno novo vindo da Espanha. “Era um menino magrinho, mirradinho, e foi o Lucas que virou o “pai” dele. Catou o Lorenzo e foi apresentar para a diretora, a moça da cantina, os professores". Da primeira à quarta série, a vida de Lucas na escola transcorreu sem sustos.
A temida quinta série chegou em 2009 com problemas acadêmicos e financeiros. De um lado, Lucas começou a sentir efeitos de mudanças como ter professores diferentes para cada matéria e uma classe com o dobro de alunos, muitos deles sem experiência de inclusão e que não conheciam o menino. “Eles riam, tiravam sarro. As notas dele despencaram e a letra, que nunca tinha sido boa, degringolou”, conta Paula. De outro lado, a bola de neve financeira da família de Paula virou uma avalanche.
“Ele foi bem até a quinta série, no ano passado, então eu tive que tirar porque não tinha dinheiro para pagar. No começo, a AMA era paga. A gente pagava também a escola, psicóloga, fisioterapeuta. A gente correu, investiu, descapitalizou tudo. Valeu a pena? Valeu. Mas foi muito doloroso ter que parar agora”, diz Paula. “A gente já vinha ganhando menos, e tentando manter, aperta aqui, acerta ali. Baixar o padrão de vida é horrível para todo mundo. Fomos levando. Quando a bola de neve estava bem grande, meu marido perdeu o emprego”.
A família então vendeu a casa e foi morar com a mãe de Paula. A dívida que tinham na escola ficou alta demais, e eles tiveram que deixá-la. “Não tenho raiva deles, é uma escola pequena, faz falta, seguraram até onde deu”, diz. O marido Mauro, desempregado com mais de 50 anos (“apesar de ser um gatão”, ela ressalta), enfrentava as dificuldades conhecidas do mercado de trabalho para sua faixa etária. Resolveu então fazer um mestrado para melhorar suas chances. Assustado com os preços das mensalidades, viu que sua saída era estudar para entrar em um “excelente e gratuito”. Foi o que fez, e entrou em um mestrado de informatização na área da saúda na escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Apesar do corte de gastos, Paula e o marido estabeleceram um limite: não colocar as crianças em escola pública. “No Estado eu não ponho, porque o Lucas vai ser um saco de pancadas. Numa sala com 40 alunos não tem atenção para ninguém, imagine para ele que precisa de um tratamento mais individualizado”. Terminando o ensino médio, Renata se ofereceu para trocar de escola e permitir que o irmão pudesse continuar estudando. Mas a mãe não aceitou. “Eu disse ‘não, um dia o Lucas vai precisar de você’. Eu preciso de você uma excelente profissional, porque não sei até onde o Lucas vai, mas você não tem limites. Então eu invisto em você, a gente conversa com o Lucas, eu ensino ele, não está tudo perdido”. Para garantir o futuro de uma filha, teve que abrir mão da aposta em Lucas.
Relacionamentos
“A gente tentou de tudo para evitar tirar o Lucas da escola, só não assaltei um banco. Quando ele teve que sair, tive medo de falar para ele, mas não tinha outro jeito”, lembra Paula. A mãe sentou com o filho para conversar sobre o assunto. Ele, que tem planos de estudar biologia quando crescer, entendeu. “Lucas disse que queria continuar estudando, porque quer ser biólogo, mas que também às vezes ficava triste na escola. Em seguida, abriu um sorriso, disse “mas tudo bem” e foi brincar. Foi melhor do que a gente esperava”, diz. “A gente tem que demonstrar que o sonho dele está mais distante. Mas ele está levando numa boa. Até que mude alguma coisa, não tem como”.
A mãe diz que o diagnóstico de Lucas hoje é diferente do inicial – era autismo de alta funcionalidade, agora é síndrome de Asperger. “Porque muda, até pode regredir, mas é mais fácil avançar”. Ela acha que o filho “sabe um pouquinho que é diferente das outras crianças. Prefiro que ele chegue a isso sozinho e depois converse comigo, não empurrar a ideia, porque senão eu mesma já vou estar pondo preconceito na cabeça dele”. Quando as crianças da escola riram dele porque ele fala sozinho, Lucas procurou a mãe. “Ele vem falar comigo, e eu falo das características dele. Perguntei se ele via os outros fazendo o mesmo, essas coisas”
Paula não nega também que sua família tenha vivido situações de preconceito. “Às vezes, o comportamento dele parece birra. Então fica todo mundo olhando como se ele fosse malcriado e os pais, uns bananas. Quando pegamos ônibus, faço ele se sentar sempre, senão ele cai. Eu caio, imagina ele! Então olham como se fosse falta de educação”.Lucas, que agora tem treze anos, acaba de entrar na adolescência. A mãe diz que a fase é parecida com a que os outros dois irmãos já passaram, mas mais intensa. “É tudo mais exacerbado nele”, conta. Os pais conversam sobre sexualidade com o caçula desde os oito anos, mas a mãe admite que tem medo pelo filho. “Espero que ele demore muito para gostar de alguém, porque vai ser difícil. A gente sabe de meninos como ele bem mais velhos e que nunca deram nem um beijo”, diz. Mas logo retoma o bom-humor ao brincar sobre as qualidades de Lucas como homem: “Apesar de que, para a mulher que souber levar, é o melhor companheiro da face da Terra. Vai fazer de tudo para te agradar, só que ele é esquisito”, ri.Ela dá exemplos da gentileza cotidiana do filho, que garante criar como um gentleman, ensinando a dar passagem e abrir portas para as mulheres, ajudar a carregar compras e coisas do tipo: “Todo mundo em casa fuma, menos o Mauro e o Lucas. Ele vem limpar cinzeiro, você acredita?! Às vezes eu falo, ‘Lu, pega o cigarro pra mim? Ele traz o cigarro, o isqueiro e um café! Pô, como assim!’, diverte-se.
Futuro
A família acredita e trabalha para que, no futuro, Lucas consiga ter uma vida independente. “A gente acha que no futuro dá para ele viver sozinho, com minha filha morando perto. Ou no mesmo prédio, ou na mesma rua. E nós vamos treiná-lo para isso. Hoje, por exemplo, vamos ensinar como passar o aspirador em casa”, conta.Sobre a vontade que o filho tem de ser biólogo, ela é realista. “Claro que para isso vai ter que estudar. Nesse momento, a gente não tem como, mas não desistimos ainda”. Isso não quer dizer que eles não invistam na exploração de outros possíveis gostos e habilidades do filho. “O Mauro gosta muito de mexer com madeira, fazer um estantezinha, essas coisas. O Lucas começou a olhar um dia, e ele chamou. Falou para tomar cuidado, ficou junto, mas precisa deixar mexer. Ele então começou a ajudar o Mauro a tirar pregos, pegou umas madeirinhas e montou uma moldura, pintou”, conta.“A gente precisa ver do que ele gosta, o que dá prazer de ele fazer. Ele gostava de tirar fotos, agora parou um pouco, mas fotógrafo é uma profissão solitária, que ele pode fazer. Até porque o olhar dele para tirar foto vai ser diferente. Vamos tentando descobrir tudo em que ele é bom, o que deixa ele feliz, para poder investir nisso e de repente ele ter uma profissão”.Agora, o marido de Paula arrumou um emprego como professor universitário. Ainda não deu para pagar a dívida na escola de Lucas, mas a família já pôde sair da casa da mãe dela. “Aos poucos, as coisas vão se encaminhando”, acredita.
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