Pacientes e parentes contam sobre a rotina e a angústia de viver com uma doença que não se sabe qual é; sem diagnóstico, não há tratamento nem expectativa de cura
Ainda pior do que ter uma doença grave é não saber que doença é. Nicole Rose Delane de Deus, hoje com 14 anos, não anda, não fala e só se comunica por olhares, murmúrios e ao segurar a mão de pessoas que gosta.
O quadro da menina nem sempre foi assim. Ela era uma criança comum, que ia ao colégio todos os dias, até próximo de completar oito anos, quando seu desenvolvimento começou a regredir: parou de andar, de falar e o corpinho perdeu a sustentação.
Os médicos chegaram a suspeitar que Nicole tivesse mucopolissacaridose, uma doença metabólica ocasionada pela falta de uma enzima. A menina foi levada para um centro médico de referência no diagnóstico de mucopolissacaridose. Após fazer exames, descartou-se a hipótese. Desde então nem mais suspeitas foram formadas sobre o quadro clínico da menina.
“Sinto falta de saber o que ela realmente tem. Descobri que ela tem excesso de vitamina C, que não é um sintoma de mucopolissacaridose, mas estas descobertas são todas por tentativa e erro. Não tenho como saber se estou tratando a minha filha direito”, reclama Elisabeth Rose Delane de Deus, 32 anos, mãe da menina.
A família de Nicole, que mora em São Bernardo do Campo (SP), recebe do governo o benefício de assistência Social (LOAS), de R$ 740,00 e única fonte de renda. Mas levar ao médico ou ao laboratório para fazer exames é uma complicação. A mãe tem dificuldade de carregar no ônibus a filha já grande e usuária de cadeira de rodas. “Já pedi o suporte de um médico da família para fazer o atendimento aqui em casa, mas já faz um ano e nada ainda”, reclama Elisabeth. O único atendimento é a ida ao neurologista, quando um amigo da família se presta para fazer o transporte de Nicole em um carro particular.
Poucos exames, poucas suspeitas
Fora os exames do kit do Centro de Mucopolissacaridose, Nicole fez apenas exames de sangue, fezes e urina, muito rasos para descobrir doenças metabólicas de base genética. “Estamos de 10 a 15 anos atrasados em relação a outros países como Argentina, Chile e EUA no que diz respeito a exames genéticos. Geralmente, estas doenças sem diagnóstico são doenças que exigem uma investigação genética”, diz o neurologista pediatra da Santa Casa de São Paulo, Fernando Arita, que não é médico de Nicole.
Arita explica que, embora as doenças genéticas metabólicas sejam chamadas de doenças raras (a incidência é pequena), há cerca de 1.200 a 1.500 doenças diferentes catalogadas hoje. No total, estima-se que de 6% a 8% da população brasileira - ou 15 milhões brasileiros - tenham algum tipo de doença rara. “Há ainda variações dentro de uma mesma doença. A gente chega até um certo ponto. Tem uma suspeita clínica, mas o padrão ouro para determinar exatamente qual é a doença é o exame genético”, diz.
A cerca de 1.500 km da casa de Nicole, em Salvador (BA), Graziela Domini Peixoto, 51 anos, urra de dor frequentemente por causa de uma doença que nem sabe o que é. Ela sente dores abdominais fortíssimas, fadiga e o corpo é todo marcado por manchas vermelhas de erupções na pele. “Já ouvi de tudo dos médicos. Até mesmo que o que eu tinha era 'piti' ou 'chilique'. Nunca soube o que tive e sofro com estas dores desde os meus quatro anos”, diz a psicóloga, autora de livros e tradutora da língua yorubá.
Tentativa e erro
Graziela descobriu por conta própria que leite e glúten pioram suas dores. O abdômen da psicóloga é tomado por nódulos. “Tenho uma alimentação restrita e descobri que meu corpo melhora com massagens. Comprei uma bela cadeira de massagens, passo o dia inteiro nela escrevendo. Já fui a tudo quanto é médico. Sou bem científica. Vou até o fim, até o médico dizer que não tem mais nada para fazer”, diz.
Durante a jornada em busca de um diagnóstico, levantou-se a suspeita de Graziela sofrer da doença de Fabry. Assim como a mucopolissacaridose, a doença de Fabry é uma doença genética, progressiva e causada pela ausência ou insuficiência de uma enzima, a alfa-galactosidase A.
“Fui até a associação dos pacientes da doença de Fabry. Eles me indicaram kits para eu fazer os exames, mas a suspeita não se confirmou”, disse.
Tios e avós de Graziela também apresentavam dores semelhantes às dela. Nenhum deles teve diagnóstico. “Meu tio morreu sendo considerado hipocondríaco. Se hoje é difícil para mim, imagina como era há 50 anos”, lamenta.
De acordo com o médico Filippo Vairo, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, centro de referência diagnóstico genético no País, há diversas doenças genéticas em que há tratamento específico, alguns deles fornecidos pelo SUS. “No entanto, há doenças que imaginamos ser genéticas. Essas, mesmo após muita investigação, não conseguimos chegar a um diagnóstico preciso. Mesmo assim podemos oferecer suporte para os sintomas que o paciente apresenta”, explica.
O grupo de Porto Alegre, formado há 30 anos, trabalha com equipe multidisciplinar com médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais. “Em muitos casos, mesmo não tendo um diagnóstico preciso e com base na história familiar, podemos oferecer aconselhamento genético para as famílias envolvidas”, completa Vairo.
O médico afirma que, embora existam outros centros que oferecem atendimento e exames relacionados a doenças genéticas, eles ainda estão mal distribuídos pelas regiões do País, havendo poucos centros nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. “Com a aprovação da Política de Doenças Raras este ano, esperamos que sejam criados outros centros para assistir a população”, diz o médico cujo hospital recebe casos de todo o País, inclusive da regiaõ Sudeste.
De acordo com a Política Nacional de Doenças Raras, assinada no dia 30 de janeiro, 15 novos exames de doenças raras serão incorporados ao Sistema Único de Saúde. O Ministério da Saúde deve investir R$ 130 milhões.
Graziela, que está quase completando meio século de uma doença sem diagnóstico, ainda não perdeu as esperanças de um dia desvendar o mistério. Até para ter com quem compartir as dores. Sem saber do mal que sofre, não consegue se associar a um grupo de pacientes ou buscar medicamento e tratamentos. Hoje, ela conta apenas com o plano de saúde particular. “Se existisse uma suspeita, eu faria tudo para buscar os meus direitos, mas nem isso eu tenho. Que direito eu iria procurar? Com quem?”, questiona Graziela
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